Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 164, fevereiro de 2014.
A violência do Estado: produção de cadáveres e acordos
a produção da violência nos primeiros acordos
O Estado não existe sem o uso da violência. Ele se funda em seu monopólio e no consenso dos dominados.
Inaugura o terrorismo moderno, cujos ápices foram alcançados com nazismo, fascismo, stalinismo, ditaduras civis-militares latino-americanas e infindáveis arranjosrotineiros na democracia.
Por vezes, ascendem-se disputas pelo controle e monopólio dessa violência nas quais grupos se colocam antagônicos, ativando o uso do terror.
Dá-se a essas situações o nome de guerra civil, quando produzem mudanças ou conservações autoritárias de governos, ou simplesmente estados de violência, quando prolongam algum conflito institucional.
Sob essas condições o Estado sempre é o bando armado que promete a paz e a segurança, desde que seu governo seja obedecido, suas leis seguidas e os julgamentos executados.
Sempre em nome da paz.
kiev
Na dicotômica composição política que configurou o século XX, a Ucrânia foi um país disputado por sua importância geoestratégica em relação à Europa ocidental e pelaabundância de seus recursos naturais, fossem eles agrícolas, minerais ou energéticos.
Para os vitoriosos da revolução de outubro de 1917, a guerrilha camponesa de Nestor Mahkno e seus cossacos garantiram as suas fronteiras contra a Europa, derrotando oexército branco.
Logo sucumbiram num misto de violência, acordos políticos, traições e massacres, ao Exército Vermelho liderado pelo general Leon Trotsky.
Hoje, quase cem anos depois, as colorações são outras, mas mortes e violências se produzem pelo controle da violência estatal e os rumos dos insumos de terrasucranianas, com o rodízio de governos arbitrários.
De um lado, estavam os nacionalistas compostos pelos estratos da classe média e os fortes sentimentos neonazistas organizados em grupos, buscando um afastamentoda Rússia para a aproximação da democrática União Europeia; de outro lado, persistia o governo de situação com traços marcadamente autoritários e com a subserviênciahistórica à Rússia de Putin, umas das figuras mais emblemáticas das atuais “democracias autoritárias” desse início de século XXI.
Depois de dezenas de mortos produzidos pelo confronto de massas nas ruas de Kiev, capital da Ucrânia, nas últimas semanas de fevereiro de 2014, chegou-se a umprimeiro acordo.
Entretanto, as negociações prosseguem com ameaças de sanções internacionais e posicionamento de tropas e grupos paramilitares de ambos os lados.
Fala-se de um impasse e da eminência de um conflito no ambiente internacional.
O acordo consistiu na produção de uma série de medidas pelo Rada Suprema (o parlamento ucraniano), entre elas a destituição do presidente Viktor Yanukovich, restituição da constituição de 2004 e a anistia irrestrita a todos os manifestantes.
No entanto, a principal peça do acordo foi a libertação da ex-premiê Yulia Tymoshenko, presa em 2011 sob “moção de desconfiança”.
Tymoshenko foi uma das lideranças da Revolução Laranja, série de protestos ocorridos entre 2004 e 2005 e que denunciaram as fraudes eleitorais de Yanukovich em sua primeira tentativa — já apoiado por Vladimir Putin — de eleição como presidente da Ucrânia.
Outra medida contida no acordo que aplacou os ânimos da oposição foi a demissão do ministro do interior, Vitaliy Zakharchenko, apontado pela oposição (transmutada em situação após os clamores populares) como principal responsável pela violência contra os manifestantes.
Yulia Tymoshenko, de perseguida, virou heroína nacional.
A peleja entre Tymoshenko, executiva apontada como uma das mulheres mais ricas da Ucrânia, e Yanukovich, cordeiro político de Putin, escancara que desde o fim da URSS, em 1991, a Ucrânia segue como alvo de disputa entre negociantes ligados à Rússia e as autoridades chamadas ocidentais.
O acordo, portanto, ao contrário do que foi anunciado reitera que o derramamento de sangue, ou sua ameaça, não terá fim, como se constata no caso da eventual separação da Crimeia.
Cumpre-se o itinerário do Estado como categoria do entendimento e forma dominante da organização política moderna: antagonismos-violência-acordos-volta aomonopólio da violência estatal e... direito penal.
Agora, o ex-presidente perseguidor virou perseguido.
O presidente interino, que assumiu logo após o impeachement do anterior mandatário, já decretou a prisão de Viktor Yanukovich sob a acusação de causar a morte emmassa de civis, e solicita os préstimos da Interpol.
A velha Europa, que produziu massacres e genocídios em nome da defesa e expansão das fronteiras nacionais, agora se vê internamente envolta, desde o início da décadade 1990, com os nacionalismos étnicos assassinos e com a difusão de preconceitos contra refugiados e imigrantes em seus territórios.
Busca resolvê-los ou acomodá-los externamente, no teatro das representações orientadas pelos valores universais da democracia liberal capitalista e dos direitoshumanos, com suas missões diplomáticas.
Membros da UE e dos EUA já se encontram na Ucrânia, prontos para acionar o Tribunal Penal Internacional, como já se cogita para Viktor Yanukovich e, se necessário,uma intervenção humanitária para garantia da paz.
Porém, as ameaças midiáticas emperram diante dos variados acordos econômicos.
Europa e Rússia, com os EUA ciscando, parecem estar, ironicamente, diante do dito popular: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Logo, a questão é para diplomatas e políticos profissionais, com ou sem massas pelas ruas.
Desenha-se uma situação de disputa não apenas em torno do Estado ucraniano, mas uma concorrência pela predominância no governo planetário: o crescimento de influência da emergente Rússia, que já recebeu sinal positivo de China e Irã, enquanto outros emergentes como Brasil, África do Sul e Índia seguem calados; a continuidade de influência do modelo estadunidense como condição de existência para a combalida UE.
Pelo lado russo, como resposta direta à queda de Yakunovich e sob a acusação de que as grandes potências ocidentais apoiaram o que identificou como “golpe de Estado”, Putin ocupou a Crimeia, “território independente”, onde se localiza a base naval militar avançada da Rússia no Mar Negro, estratégico por ser a saída para o Mar Mediterrâneo, Canal de Suez e o Oceano Índico.
Para além da ocupação da Crimeia, a Rússia declarou o corte dos descontos negociados anteriormente com Yanukovich e não descartou a utilização de “força militar para defender os cidadãos russos” que moram no território ucraniano e incentivar um plebiscito separatista enfeitado de fortalecimento federalista.
As centrais de telefonia e de distribuição de internet foram danificadas na Crimeia, também por homens não identificados. Alguns celulares foram desabilitados por hackers russos na Ucrânia, mas são apenas interferências momentâneas. Não interessa à Rússia, disse um ex-agente da CIA, derrubar a internet, mas causar pequenas invasões, bloqueios e manter o monitoramento.
As chamadas revoluções democráticas do final da década de 1980, saudadas pelos liberais como pacíficas e capazes de substituir a guilhotina pela mesa de negociação,nesse início de século XXI seguem produzindo violências em defesa da democracia e do capitalismo transterritorial.
O caso ucraniano deve ser visto com atenção, pois o agonismo que tem colocado em questão a violência estatal em várias partes do planeta, quando materializado emantagonismos que buscam protagonizar a violência estatal, mata, também, qualquer possibilidade de invenção de liberdade.
Os profetas da década de 1990, que viam uma era de paz e interdependência para a velha Europa após o fim da Guerra Fria, enganaram-se.
A guerra civil permanece na Síria, perfeitamente administrável pelas potências no Conselho de segurança da ONU ou na diplomacia multilateral.
O que acontecerá com a Ucrânia?
Na disputa pelo Estado sempre reina o terror, com ou sem tribunais especiais. A polícia e a diplomacia planetárias mostram-se cada vez mais decisivas nas disputas pelo governo do planeta.
kiev e caracas
Diferente da Ucrânia, na Venezuela não se trata de uma disputa transterritorial por recursos. Tampouco está animada por disputas étnicas e raciais internas, ainda que o paísseja um importante membro da OPEP e a retórica nacionalista ou bolivariana seja um marcante instrumento do governo de Maduro, como o foi para Cháves.
Há anos libertários residentes na Venezuela alertam para a violência sistemática da polícia e do exército, acrescida da ação de grupos paramilitares armados e defensoresprofissionais do governo bolivariano chamados de “coletivos”.
Essa violência sistemática do governo é justificada pelo fomento da existência de uma violência difusa nos meios urbanos e pela concreta paranoia de tentativa de golpeda direita, com o apoio dos EUA, como ocorreu em 2002.
A insatisfação de parte dos cidadãos venezuelanos hoje, deriva das dificuldades cotidianas em conseguir produtos básicos de consumo, como comida e material dehigiene pessoal, similar a Cuba, além de uma suposta escalada de violência dita criminal.
No entanto, trata-se também da busca de protagonismo no ambiente internacional, mesmo considerando que, no âmbito dos BRICS, a conduta do emergente daqui, o Brasil, seja mais ambígua e incomparável com a do emergente consolidado de lá, a Rússia.
Os adversários do governo organizados em partido, sob a liderança de Henrique Capriles Radonski, souberam capitalizar essa insatisfação, ainda que a oposição aogoverno, entre os diversos grupos que foram às ruas nas últimas semanas, não se traduza automaticamente em apoio a ele.
Em meio aos confrontos de rua, que já produziram mais de 20 mortes — entre as quais a de mais um símbolo nacional, a miss Venezuela Turismo —, oportunistas, degoverno e oposição, trocam acusações sobre quem é o responsável pela violência difusa nas ruas; leia-se: quem deve monopolizá-la.
Se na Ucrânia fala-se em neonazismo golpista e interferência estrangeira, ou mesmo de nazismo na política de Putin, como sugeriu a Sra. Clinton, na Venezuela fala-se emgolpe de Estado e falta de legitimidade.
Trata-se, nos dois casos, da ativação e reativação de sua violência sistemática com a marca dos tempos atuais que recomenda o exercício da violência compartilhado comoutros Estados, ainda que sob a renovação de antigas práticas, como o populismo nacionalista na Venezuela e o nacionalismo racista na Ucrânia.
Diante de mais de oitenta cadáveres expostos pelas ruas de Kiev o então presidente Viktor Yanukovich declarou que o país era alvo de uma “insurreição”.
Entretanto, a palavra afirmada historicamente por libertários que viveram sem e contra o Estado foi escamoteada por Yanokovich.
A retórica revolucionária do governo venezuelano e a retórica planetária de defesa da democracia e da liberdade operam para confundir os zonzos cidadãos obedientes a qualquer governo, para responder ao imediato.
Ao contrário do que declarou Yanukovich, os protestos que eclodiram em novembro do ano passado — como reação à suspensão das negociações do governo com a UniãoEuropeia e que, posteriormente, foram inflamados pela resposta às violências e aos assassinatos de manifestantes perpetrados pelo Estado — nada têm de insurretos.
Em Kiev, na Praça da Independência, o sangue é derramado em nome do “futuro”, pela disputa do domínio da política na Ucrânia.
Em Caracas, pessoas são mortas seja para defesa das “conquistas do governo popular”, seja para defesa de uma “verdadeira democracia”.
O que se passa hoje pelas ruas dos dois países é algo distinto de uma insurreição, palavra utilizada pelo libertário Sébastien Faure para definir “levante contra o poderestabelecido”, que não pretende instaurar outro governo supostamente mais justo ou legítimo.
Certos anarquistas, em Kiev e em Caracas, afirmaram desde o início que o fogo das ruas deixa intocado o Estado e que a construção de oposições disseminadas planetariamente pela mídia entre a defesa do alinhamento com a União Europeia ou a Rússia, no caso ucraniano, e entre Capriles e Maduro, no caso da Venezuela, não passamde “falsa escolha”.
Tanto a busca pelo chamado “paraíso europeu” como a permanência do enredamento à Rússia se assentam, segundo anarquistas que vivem na Ucrânia, na continuidadeda velha política, isto é, das infindáveis violências do Estado para a gestão mais lucrativa do capital.
Os libertários na Venezuela se esforçam em disseminar pela internet que escolher entre a violência dos coletivos chavistas e as milícias de direita, não faz o menor ou maior sentido.
A disputa que animou as chamas na Praça da Independência em Kiev e que resultou em dezenas de cadáveres empilhados na porta de hotéis explicita, de ambos os lados,a irrupção de forças conservadoras.
Assim como os linchamentos de pessoas nas ruas de Caracas, sob a acusação de serem infiltrados golpistas da direita alinhada com os EUA, não passa de uma estratégia para sustentar o regime bolivariano.
Se, de um lado, os defensores do enredamento da Ucrânia à União Aduaneira de Putin alegam que a aproximação com a UE trará “costumes perigosos”, por outro lado,entre os partidários da negociação com a Europa e apoiados por autoridades governamentais estadunidenses são arregimentados desde jovens desolados, torcedores doDínamo de Kiev, veteranos das guerras do Afeganistão e da Geórgia até neonazistas como os integrantes do Partido Svoboda.
O que se passa pelas ruas da Ucrânia não é uma insurreição.
Entre os manifestantes de Caracas, poucos estão defendendo a liberdade e o fim da violência.
Nem revolta, nem insurreição, o que se passa nos dois países tem um nome: política para sustentar o monopólio legítimo da violência.
É a continuidade temporária da exposição de cadáveres em praça pública.
O fogo que consome a Ucrânia não empolga, pois, não possui ar livre.
A agitação que toma as ruas de Caracas tem silenciado as poucas vozes livres no país.
O fogo libertário não se produz por meio de disputas pelo monopólio da violência, tampouco, a favor do Estado; ele é afirmação da revolta como atitude da vida livre erecusa a política como determinação da vida.
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