revisões
Desde 1976, as versões da legislação penal sobre drogas oscilam segundo os efeitos dos impactos repressivos e midiáticos relativos à amenização sazonal da penalização aos usuários das classes médias e altas. Estabeleceu-se a distinção entre usuário e traficante. A atribuição da culpabilidade de um e outro reside na disposição moral dos tribunais. A cada revisão, contando a de 2006 e a atual, em andamento no senado, o julgamento prévio do uso de drogas como pernicioso à segurança e à saúde públicas e a condenação ao tráfico permanecem inalterados. A seletividade penal condena arbitrariamente os usuários pobres como traficantes. Antes de cada revisão da legislação penal as mídias não cansaram de escancarar a superlotação de presídios para jovens e adultos relacionados ao chamado tráfico de drogas, colaborando para a renovação e reforma da mesma história cíclica.
governamentalidade
O circuito se refaz com projetos para a construção de mais prisões, propostas de variações de penas alternativas e medidas sócio-educativas, condenação prioritária da droga em uso mais evidente, sugestões de ampliações policiais e programas de saúde e segurança, favorecimento ao desenvolvimento da indústria de armamentos, propostas de ações de combate contínuo a sedes conhecidas do tráfico em periferias e suas conexões irreversíveis com as prisões, aumento de chacinas policiais e de gangues e/ou das chamadas facções... A governamentalidade das drogas volta-se sempre às medidas higienistas, para as quais colaboram ONGs, Institutos, Igrejas, políticos, movimentos sociais, gente interessada em garantir o exercício da boa cidadania. E o ciclo se refaz até o próximo ponto de estrangulamento. O que parece mudar é sempre revestido pelo que deve permanecer constante.
vício e virtude
Cientistas e religiosos, cada um ao seu modo, e por vezes, associados, apresentam relatórios e propostas que reiteram a condenação ao tráfico e a salvação do viciado. A este se superpõem os juízos da virtude. Sobre eles recaem renovados dispositivos morais capazes de fazer funcionar a continuidade do Estado, de cada governo e do próprio tráfico. A covardia maior reside em condenar à prisão ou à morte imediata certos usuários que funcionam como agentes de distribuição da mercadoria. A grande covardia desta moral está em sua aversão em abolir o tráfico. Ao fazê-lo, deixaria a cada um o uso que conviesse. Afinal, ninguém é capaz de acabar com a infelicidade, o desejo de sua morte, a desistência da vida numa sociedade desigual e assimétrica como a capitalista. engodos Um tanto de coragem para acabar com o tráfico é urgente. Todas as medidas antiproibicionistas devem ser saudadas e a legislação deve ser mais uma vez reformada para que possamos derrubar muros e seguir mais livres. Dentre elas, a principal deve ser a que acabe com a seletividade penal voltada para pobres. Isso requer coragem dos tribunais para exercitar sua prepotente vontade com o mínimo de justiça. Mas isso é uma falaciosa utopia. Sem a seletividade penal não há direito penal, polícia, justiça e cidadãos de bem. Igrejas e comunidades científicas dependem e fortalecem a mesma moral. Homens e mulheres comuns também estão governados por esta moral, assim como traficantes e grande parte dos usuários.
as abelhas
As abelhas produzem o mel de onde os gregos extraíram a delícia da ambrosia, citada por vários estudiosos como a primeira droga conhecida do ocidente, jamais proibida pelos fundadores da cultura europeia que governou o planeta. As abelhas são operárias de uma abelha-rainha que mata o zangão após ser fecundada. Não precisamos ser como as abelhas. Dispomos de seu mel; não o transformemos em fel. Livremo-nos do julgamento moral que produz equiparações com a natureza. Inventemos um direito ao prazer que prescinde de julgamentos e poder centralizado!
empresa de encarceramentos
O Coronel Comandante da Polícia Militar de São Paulo celebra novas políticas de bonificação para policiais, anunciadas recentemente pelo governo do estado. Em suas palavras, “essa estratégia da Secretaria de Segurança Pública vai ao encontro dos interesses da nossa empresa chamada Polícia Militar”. Espelhadas no programa de tolerância zero, as bonificações por produtividade policial, condicionadas à diminuição dos índices de criminalidade, obedecem a uma racionalidade neoliberal para o funcionamento do quadro jurídico do Estado, segundo uma lógica econômica concorrencial. A produtividade de delegacias-empresas é, assim, associada ao número de capturas e detenções em suas jurisdições. Seus efeitos seletivos são o aumento do amontoado de corpos depositados nos estabelecimentos prisionais depois de estarem socados nos corrós de delegacias.
disputa de interesses e morte
Na última semana, o assassinato de um terena durante operação de reintegração de posse de uma fazenda no Mato Grosso do Sul ganhou as páginas dos jornais durante dois ou três dias. A notícia foi veiculada como um escândalo, a presidente se disse chocada. Qual é a novidade? Desta vez, o tiro fatal parece ter sido disparado pela polícia do Estado, mas quantos já tombaram por covardes tiros pelas costas, na calada da noite, efetuados por outros policiais: os capangas e jagunços a serviço dos fazendeiros? E quem ainda não percebeu que o Estado e sua violência legítima servem também aos mesmos interesses?
morte na disputa de interesses
Enquanto isso, grupos de ruralistas afirmam que o assassinato noticiado é uma tragédia provocada por entidades indigenistas que incitam a violência dos povos indígenas. Alegam que ela é utilizada como via de disputa ideológica. No entanto, alguns indígenas mostram que sua disposição para a luta passa ao largo de engalfinhamentos institucionais.
luta e afirmação da existência
Para os terena, o que está em jogo na luta pelas terras é mais do que uma simples disputa territorial: trata-se da possibilidade de sua existência. Lutando por sua vida, não reconhecem fronteiras territoriais e tampouco os sentinelas (funcionários públicos e/ou particulares) que as guardam. E não se amedrontam diante da demonstração de força destes canalhas que, não raro, custa a vida de algum dos seus. Ainda que não seja novidade, é preciso estar atento a cada vez que um indígena é morto para que o vigor de sua luta, que atenta contra o Estado, não seja esquecido.
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