quinta-feira, 20 de junho de 2013

A arte de mostrar o invisível

POR 
JOSÉ GERALDO COUTO

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Concebido por Leon Cakoff, Mundo Invisível coloca cineastas como Wim Wenders, Manoel de Oliveira e Beto Brant em diálogo sobre (in)visibilidade contemporânea
Por José Gerado Couto*, do blog IMS
Não é toda hora que o cinéfilo pode ver, numa única sessão, um pouco do cinema de Wim Wenders, Theo Angelopoulos, Manoel de Oliveira, Jerzy Stuhr, Beto Brant e um punhado de outros realizadores de primeira linha. É isso, nada menos, o que nos oferece o longa Mundo invisível com seus onze segmentos, assinados por doze diretores das mais variadas nacionalidades.
O projeto foi concebido por Leon Cakoff, criador e diretor da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, morto em 2011, e Renata de Almeida, sua parceira na mostra e na vida, nos moldes de outro filme coletivo produzido pela dupla em 2004, Bem-vindo a São Paulo.
Se o longa de 2004 trazia as marcas do improviso e de uma certa precariedade, Mundo invisível, talvez pela parceria com a produtora Gullane, se apresenta como uma obra bem mais madura e consistente, a despeito da deliberada heterogeneidade de enfoques, estilos e linguagens de suas partes, mais ou menos articuladas pelo tema geral da (in)visibilidade no mundo urbano contemporâneo.
Concisão de mestres
A partir dessa ideia um tanto vaga, cada cineasta seguiu um caminho particular. Com exceção do último segmento, dirigido por Atom Egoyan e escrito e protagonizado por Leon Cakoff, que se passa em Yerevan, capital da Armênia, todos os outros são ambientados em São Paulo.
Alguns são curtíssimos, econômicos, quase minimalistas, explorando a concentração temporal do curta-metragem. O caso mais extremo é o de Jerzy Stuhr, que se limita a filmar o público de uma sessão de seu filme O tempo de amanhã, na Mostra Internacional de São Paulo de 2003. A imagem granulada dos rostos banhados pela luz da tela, sob o som dos diálogos em polonês (com legendas em português), cria uma terceira dimensão, que é o território mágico do cinema.
Outro episódio enxuto é o de Manoel de Oliveira, no qual dois amigos (Leon Cakoff e Ricardo Trêpa, neto do cineasta português) encontram-se casualmente na avenida Paulista e, para conversar sem ser interrompidos pelos toques de seus respectivos celulares, resolvem falar um com o outro… pelo celular. A força do filme vem do contraste entre essa situação prosaica e a gravidade dos assuntos abordados na conversa: a crise da ética no mundo, a ânsia pelo poder que atropela tudo, propostas para salvar o planeta. Há apenas três planos no filme: a avenida vista do alto de um terraço do Conjunto Nacional; os dois amigos conversando em plano médio, um de frente para o outro; os mesmos dois vistos a partir do outro lado da avenida, sem que ouçamos suas falas. Uma lição de limpidez e capacidade de síntese.
Atores invisíveis
No outro extremo há segmentos bem mais longos, como o de Maria de Medeiros, sobre um camareiro de hotel que presencia as histórias cômicas ou trágicas de vários hóspedes mantendo-se praticamente invisível a eles, e o de Laís Bodanzky, uma discussão sobre o conceito de “ator invisível” criado pelo diretor e ator japonês Yoshi Oïda. Os dois são parcialmente frustrados. O de Maria de Medeiros, pelo caráter um tanto ingênuo da “mensagem” e pela encenação convencional. O de Laís, pela redundância dos depoimentos (de dois atores e de uma monja budista, além do próprio Oïda), ainda que cada um deles, individualmente, possa ser interessante.
No registro documental, Wim Wenders foi mais feliz ao retratar crianças com grave deficiência visual (vale dizer, quase cegas) tratadas num departamento especial da Santa Casa de São Paulo. A delicadeza e a precisão do olhar de Wenders e o encanto natural das crianças fazem a força do filme. O único senão fica por conta da música onipresente ao piano (de André Abujamra) que, apesar de bela, redunda com as imagens, “perfumando a flor”, como diria João Cabral de Melo Neto.
O segmento mais estranho e ousado – e que parece ter menos a ver com o tema geral proposto – é também um dos melhores. Trata-se de Kreuko, de Beto Brant e Cisco Vasques, dividido em duas partes bem distintas. Na primeira, um homem filmado em close (Mauricio Paroni de Castro, também autor do roteiro), com o rosto parcialmente mergulhado na sombra, diz, com uma fala alucinada e olhos esbugalhados que fazem lembrar Peter Lorre, que optou por enlouquecer durante uma quimioterapia, e passa a narrar cenas de peças de Shakespeare em versões pervertidas. Na segunda parte encenam-se, mais ou menos, essas cenas, em cenários teatrais, com iluminação expressionista e mise-en-scène de cinema mudo. Há algo de David Lynch nesse exercício, e o efeito é tão poderoso que o espectador demora um pouco a identificar Sônia Braga e José Wilker entre os atores.
Testamento de Cakoff
Por fim (já que é impossível falar de todos), cabem algumas palavras sobre o segmento que encerra o longa, Yerevan, o visível, dirigido pelo armênio-canadense Atom Egoyan. Nele, Leon Cakoff, também de origem armênia, aparece sentado numa praça central de Yerevan segurando a foto de um homem que ele diz ser seu avô, executado pelos turcos há quase cem anos.
"Mundo invisível"
Leon cumpre ali uma promessa feita à mãe, de procurar naquela cidade alguém que tenha conhecido o pai dela. A situação dá origem a uma colagem de filmes e fotos que documentam o genocídio dos armênios pelos turcos otomanos e vários momentos da luta armênia pela autonomia nacional. A imbricação entre biografia e história nem sempre é convincente, mas é impossível evitar a comoção ao ouvir Cakoff pronunciar, no final do filme, palavras que poderiam resumir toda uma vida (a sua) dedicada ao cinema: “Filmes mudos, greves silenciosas, genocídio esquecido: qualquer coisa para afirmar a minha crença no poder das imagens”.

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