domingo, 19 de agosto de 2012

A potência revolucionária dos pobres e dos índios



Devir índio, devir pobre
Devir índio, devir pobre
Crônica de um seminário realizado durante a Rio+20, em que subitamente entraram em conflito distintas visões de desenvolvimento e projetos para o país
Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos
Em 15 de junho, aconteceu o seminário Terra, na Casa de Rui Barbosa, no Rio. Inscrito como evento da Cúpula dos Povos, o encontro de grupos militantes e intelectuais tinha por objetivo aprofundar a crítica ao modelo de desenvolvimento. No contexto da crise socioambiental, aterrar a discussão nas lutas, nas alternativas, nas ocupações e formas de resistir e reexistir. Na ocasião, o cadinho de falas, textos e debates resultou em bons e maus encontros. Uma fratura que repercute a própria atividade prática dos grupos que participavam da dinâmica. Foi a “trama da sapucaia”, para pegar emprestado de um texto de Cléber Lambert. Como toda fratura em ambientes de rico pensamento e debate aberto, teve basicamente dois efeitos. Um efeito narcísico, improdutivo, edipiano, neurótico. Quando o desejo volta contra si mesmo como planta venenosa, com piadinhas, pulsões e muito espírito de rebanho, o que acaba por reunir o ressentimento dos súditos em projeto de vingança. Mas também o outro lado, produtivo, prometeico, fabulador. Quando o desejo se liga ao real sem recalques, gera diferenças qualitativas e propicia que se continue pensando e continue lutando. Esses dois efeitos atravessaram as pessoas em várias intensidades e sentidos, nos dois pólos do debate. Eu particularmente prefiro Prometeu a Narciso e não renuncio à agressividade da diferença.
No final do seminário, um dos palestrantes (não lembro exatamente quem), do alto de seu poder de síntese, resumiu as posições. De um lado, aqueles que defendem que “o índio vire pobre”. Do outro, aqueles que defendem que “o pobre vire índio”. Os primeiros representariam o projeto desenvolvimentista. Fazer do índio mais um trabalhador e consumidor do novo Brasil, o país do futuro que chegou. Inclui-lo na sociedade forjada pela modernidade. Uma monocultura inteiramente pautada pelo quantitativo, o extensivo e o pacto diabólico da produção pela produção. Em última instância, aqueles que defendem Dilma (pela via economicista). Os segundos, defensores que “o pobre vire índio”, pensam a cosmologia indígena como alteridade radical à sociedade colonizada. Opõem o intensivo ao extensivo e a qualidade à quantidade. Para eles, a solução está em combater para que o índio não vire pobre, ao mesmo tempo em que os pobres se indianizem, e assim possam vencer a assimetria fundamental de uma antropologia que os assujeita e que se manifesta em todos os lugares e discursos por onde passam. Em vez disso, o pobre é que deve se reconstruir pelo índio. “Todo mundo é índio, menos quem não é” (Eduardo Viveiros de Castro). Disseminar o índio no corpo da população, como na retomada cabocla das terras, ou na campanha indigenista dos zapatistas. Em vez de concretar o Xingu, mostrar que a cidade jamais deixou de ser indígena. Que a floresta como saturação de relações jamais deixou de ser a nossa verdadeira riqueza cultural. Em última instância, aqueles que promovem Marina (por essa via antropológica).
Com o recorte, esse palestrante tentou sintetizar as múltiplas incidências da questão num simples fla-flu. Uma operação legítima do ponto de vista das estratégias político-teóricas envolvidas, mas que terminou por colocar o problema de maneira desfocada e, no fundo, simplória. É que o problema começa no verbo. Nem tanto o pobre virar índio, ou o índio virar pobre, mas pôr em questão o virar mesmo. A questão está no processo de passagem, mais no trânsito que nos pontos de partida e chegada, a imanência da reexistência às transcendências das culturas existentes. O palestrante confundiu o devir com o sujeito. É preciso antes de tudo examinar a travessia, a transformação mesma, que é primeira em relação ao que se transforma. Isto significa assumir uma perspectiva em que as coisas se sustentam instáveis, enquanto cristalizações de processos inacabados e precários; e em que a relação entre as coisas existe como uma relação entre transformações de transformações, relações de relações em ação cruzada. As coisas ficam mais abertas à mudança. E ensejam ser desdobradas em múltiplas perspectivas.
A pobreza, por exemplo, contém um paradoxo. Na mesma medida que é privação, também é potência. Por óbvio, privação e potência não acontecem ao mesmo tempo. Mas o pobre é aquela força que caminha nesse campo instável, onde pode transitar por todo o espectro de grau entre uma e outra. Porque a pobreza tem uma dimensão afirmativa, inventa novos usos, constrói o máximo do mínimo, a favela do lixo, a poesia das expressões doridas e tensionadas das ruas. Gatos nascem livres e pobres e recusam a ser chamados pelo nome. Qualquer prescrição de imobilidade não serve para quem tem de se mover todos os dias para reinventar o mundo, em cuja crise o pobre vive e se relaciona. Devir pobre ativa a potência insofismável dessa classe inscrita como agente de produção do capitalismo.
Por que não se trata tanto de virar isto ou aquilo, mas de devir. Pode ser ridículo eu, homem branco, querer ser negro, mas nada impede aconteça uma negritude em mim. Devir-onça não significa tornar-se uma onça. Nesse sentido, sucedem processos de transformações que podem ser apresados subjetivamente, e o conjunto galgar novos horizontes éticos e políticos. Devir pobre, índio, mulher, criança, planta, mundo. Nos devires, está em jogo a construção de um comum de reexistências e lutas, no interior das culturas e identidades disponíveis. No interior e para além, e mesmo contra. Um comum diferenciante em que as diferentes forças de existir podem se enredar e se maquinar na própria distância entre elas, no dissenso constituinte; sem redução a uma identidade comum,  ao consenso, ao denominador comum, a um “em comum”. É se recompor no amor pelo outro, sem reduzi-lo a si, nem se submeter a ele. Isto é, partilha desmedida de afetos ativos, no bom encontro em que se multiplicam e produzem o real, jamais na subjugação entre seres comensuráveis entre si, na redução ao “consenso mínimo do relacionamento”.
Com essa forma de pôr o problema, é possível se concentrar antes nas estratégias e táticas de ação, nos agenciamentos do desejo, nas formas de criar e se deslocar, — em tudo que isso que favorece uma fuga reexistente das identidades, e assim favorece a diferença por si mesma — do que ficar idealizando e descrevendo outras identidades possíveis, lutando pelas existentes ou combatendo outras que possam vir a existir, como faria um inventariante dos elementos culturais por aí. Posso irromper dentro de mim, — mesmo que eu me constitua de forças majoritárias e dominantes da cultura estabelecida, — irromper o meu avesso, o meu avesso simétrico, o meu índio e o meu subdesenvolvimento, um intensivo pelo qual tudo o que passa resulta diferente. Essa diferença ameaça o poder constituído. Uma força que vem, acontece, e me arrasta pra outro lugar e outro tempo.
O primado da diferença implica que o problema de índio-virar-pobre ou pobre-virar-índio embute uma dicotomia infernal. Já se trata, desde o início, de um falso problema.
Portanto, é preciso recolocar o problema. Preocupar-se em ser pobre ou índio é muito pouco. Faz-se necessário mobilizar os substantivos em verbos, molecularizar os adjetivos em advérbios. O caso não está na transformação de A a B ou de B a A. E sim no diferencial C que faz com que A e B possam coexistir no mesmo plano de composição política. Então é caso do pobre devir índio e o índio devir pobre. E mais. Seguindo a lógica, igualmente sucede um diferencial entre A e A´, e entre B e B´. Ou seja, o pobre devir pobre e o índio devir índio. Se o projeto do novo Brasil consiste em fazer da “Classe C” o modelo de cidadão, trabalhador e consumidor, esta figura antropológica pode devir pobre-potência. O trabalhador recusa o trabalho, o consumidor consome o consumo e o cidadão se revolta. De maneira simétrica, o índio devém índio ao impregnar as forças que o constrangem na maior comunidade de todos os tempos: o mercado capitalista global. Menos para ser reconhecido como indígena do que para indianizar o poder. Institui outras formas de medir, se relacionar e escapar dos aparelhos de captura. Contra Belo Monte, o Xingu em São Paulo.
Muitas vezes, sofisticados esforços de desmontagem da metafísica ocidental perdem de vista o essencial. Todo o esforço por desarranjar a violência e o intolerável, inscritos na estrutura produtiva deste mundo, só é eficaz levado a um sentido material. Isto é, animado pelos processos de transformação e afirmação de diferença já em andamento, pela proliferação de lutas socioambientais que se debatem no dia a dia. A política precede o ser. E política sem transitividade com a crítica do sistema produtivo se torna cega à máquina capitalista, arriscando nivelar-se a uma apologia (embora requintada e elitista) ao que de pior há na modernidade européia: a economia política clássica e neoclássica.
A agressão e destruição dos aparelhos de captura só acontecem quando imediatamente ligadas à montagem de uma máquina revolucionária.
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Devo parte do conteúdo deste artigo à palestra proferida por Cléber Lambert no seminário de anteontem à Casa de Rui Barbosa, co-organizado pela Universidade Nômade, bem como ao encontro produtivo entre dois pensadores de primeiro time do Brasil contemporâneo, Eduardo Viveiros de Castro e Giuseppe Cocco.

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