sábado, 14 de março de 2015

flecheira.libertária.375

mulheres 
Há variadas versões para a “origem” do Dia Internacional da Mulher. Desde o incêndio em indústria têxtil de Nova York, que culminou na morte de centenas de operárias, no início do século XIX, até protestos de mulheres na Rússia no momento da eclosão da I Guerra Mundial. Nos anos 1960, militantes atualizaram a data visando animar o fogo de combates liberadores. Na década seguinte, a ONU formalizou a data como celebração das “conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres”. Antes e depois da origem e da data cívica, mulheres extraordinárias combateram o macho, a polícia, o Estado, e a política reivindicatória de direitos. Há quase um século, Emma Goldman, anarquista fichada pelo governo dos Estados Unidos como a “mulher mais perigosa da américa”, afirmou: “é certo que o movimento pelos direitos da mulher quebrou muitas cadeias, mas também forjou novas. A efetiva emancipação não surgirá das urnas de voto nem dos tribunais”. 
frequentando os direitos 
A publicidade, descolada ou caretona, voltada às mulheres independentes e às mulherzinhas, aposta na solenidade. À imperdível oportunidade de lucro, agora se soma a valorização de uma conduta socialmente responsável. A mulher está incluída no mercado como consumidora, produto, trabalhadora e/ou empreendedora. A mídia celebra as de mulheres de sucesso e expõe corpos e vidas violentados das demais como exemplos dramáticos de histórias tristes. As militantes marchadoras entoam palavras mofadas em seus protestos caquéticos. Cumprem agendas para serem visualizadas como minoria pluralista, obediente e tolerante. As oportunistas condutas machistas continuam a calar, violentar, exterminar e governar. E, de repente, aparecem repaginadas como masculinismo!!! Para coroar, mais uma conduta é criminalizada como crime hediondo. Isso é que dá querer frequentar. 
comida 
Uma rede internacional de parques de diversão inaugurou neste verão uma sede em um shopping da cidade de São Paulo. Criado no México, nos anos 1990, o Kidzania imita uma grande cidade, estimulando crianças de 4 a 14 anos a escolher sua futura profissão e a consumir fielmente determinadas marcas ali espalhadas. Em recente entrevista, o criador do empreendimento (presente em 10 países e com mais de 10 milhões de visitas) declarou: “o parque em formato de cidade é uma potente plataforma para se criar lealdade às marcas nessa sociedade de consumo”. Seguindo a premissa time is money, o Kidzania possibilita aos pais gastarem pelo shopping enquanto seus filhos aprendem, ludicamente, como administrar créditos. Pais e filhos, crentes no capitalismo e na força da grana, desfilam carnudos, rosados e ocos. Despertam a fome dos miseráveis. 
cereja no bolo 
Todos os domingos milhares de pessoas se locomovem madrugada a dentro para visitar seus parentes ou amores sequestrados pelo sistema penitenciário. Em São Paulo, a imensa rede carcerária, que se espalha também pelo interior, suga gente do Brasil inteiro. A grande maioria é composta mulheres, pretos ou quase pretos e pobres. Carregados de sacolas de comida em vasilhames transparentes ou sacos plásticos, procuram estar de acordo com as regras, estabelecidas pela polícia do Estado ou pelo PCC e similares. Desejam evitar maiores incômodos, constrangimentos e penalidades. Prontos para entrar, passam pela humilhante revista íntima, proibida pela legislação. Dizem que as visitas são necessárias para o processo de ressocialização. Com ou sem legislação a família é parte constitutiva da prisão desde o século XIX.

quinta-feira, 5 de março de 2015

hypomnemata 173

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 173, fevereiro de 2015.

Água
            Os humanos, a flora e a fauna, assim como o planeta Terra são compostos preponderantemente de água e dela dependem.
O planeta tem água potável, não potável a ser transformada por engenharias de refinamento (a custo alto, é claro), e poluída pela industrialização moderna (a custo capitalista baixo e social alto).
         Estudos contemporâneos voltados para o desenvolvimento sustentável denunciam o mau uso das águas. Ao mesmo tempo, deslocam para os consumidores a tarefa e a responsabilidade de economizar e moldar suas condutas para o bom uso da água (que resta).
         Indicam que deverá haver esforços a serem dispendidos pelos governos, indústrias e agronegócios para o aproveitamento das águas, suas nascentes, de águas poluídas e mares.
         Envolta no emaranhado das chamadas catástrofes climáticas, a questão da água em breve se transformará em um lucro a mais para o regime da propriedade. Quem tiver renda para obtê-la e financiar novos aquedutos para captar água de rios, chuvas e talvez marinha serão agregados aos proprietários.
         O bom uso recomendável da água pelas práticas da sustentabilidade transfere ao cidadão e à sua prole o dever de compartilhar a boa gestão da água enquanto governos, financistas e industriais bebem suas águas medicinais e minerais de grife. E vão poluindo o quanto podem; afinal, desenvolvimento é preciso.
         Trata-se do regime do esforço de muitos para manter a produção de alimentos, petróleo, indústria, da fome e da sede cada vez mais melhorada na medida do possível sustentável.
         Sustentável a quem? Para quem? A resposta é óbvia: uns lucram e fazem da crise um drama para anunciarem um iminente futuro trágico. A cada pobre, miserável ou obediente cidadão que cumpre as tarefas impostas na redução de seu consumo resta ficar à disposição das justas penalizações por descumprirem as leis.
         Em breve, entre usos e reutilizações de águas podres restarão aos privilegiados os majestosos oásis como os dos inovadores emirados.
         Enquanto isso, militares e diplomatas pensam em como defender (e quem sabe tomar) o ouro azul do futuro.
Lugar comum insustentável.

purificando a água
Durante a crise da água, como vem sendo afamada, expressões do grotesco nos avizinham. A última destas expressões trata sobre o uso das “águas” da Represa Billings, em São Paulo.
O grotesco revela o disforme e o horrível, mas também o cômico e o bufo, como traços modernos da existência humana. Trabalha com as excrecências não com nojo, mas como aquilo que também nos revela mundanos, ou baixos humanos.
Assim, um poeta francês, perspicaz ao falar do mal, mesmo nas flores, em um de seus poemas cita os detritos hostis como um confuso material vomitado por Paris. De outra parte, um pouco mais otimista, outro escritor francês, ao falar dos miseráveis no século XIX, acredita que a sinceridade da imundície é capaz de agradar e repousar a alma.
De um lado ou de outro, uma tragicomédia está para ser traçada com a possibilidade de uso do vômito expelido por São Paulo, através do Rio Pinheiros, cuja descarga acontece na Billings.
Independentemente da capacidade e custos de purificação deste esgoto por meio de tratamentos químicos e físicos, não se pode ignorar o fato da cidade nos devolver aquilo que expelimos por um orifício e que pode nos retornar por outro, exatamente neste sentido inverso.
O governador mandou avisar que a água estará própria para o consumo humano, mas os especialistas ainda debatem e se contradizem sobre a viabilidade de tal empreitada.
Não se sabe ainda ao certo o grau de purificação que o esgoto da Billings pode alcançar para se tornar potável. Mas não se duvida da possibilidade dos administradores públicos venderem barro por água, como já vem sendo notado em milhões de torneiras, em especial, nas periferias da cidade.
Nestas regiões que vivem no constante rodízio, a água quando vem é podre. A maioria de seus habitantes suportam a situação como fatalidade.
Se assim for, provavelmente nossa bílis tratará de identificar as impurezas da Billings e, por função que lhe é característica, retornar em vômito, aquilo que a cidade já havia vomitado.
Este é o ruminar das aglomerações urbanas.

o estado da água é o roubo pelo Estado
Cantareira pode ser tanto o “osso articulado ao úmero e ao esterno; clavícula” como um “poial para cântaros na cozinha”.
Segundo relatos dispersos, a última definição está relacionada com a terra próxima à cidade de São Paulo. Nos séculos XVII e XVIII, a região foi percorrida por tropeiros que abasteciam os cântaros de água para seguirem adiante rumo a Minas Gerais e Goiás.
Contudo, foi a partir de meados do século XIX, mais precisamente em 1863, que a mata se tornou alvo de interesse, efeito do laudo de engenheiros ingleses, encomendado pelo governo da Província, que indicou o chamado Ribeirão da Pedra Branca como o ideal para a captação de água para o abastecimento de São Paulo.
Uma década depois foi criada a “Companhia Cantareira e Esgotos” (1877) e nos últimos anos do século, sob a argumentação de ampliar o abastecimento e proteger as nascentes, o Estado desapropriou parte da área para a criação da “reserva florestal da Cantareira”.
Se, no século XIX, parte da denominada Serra da Cantareira tornou-se propriedade do Estado, no fim dos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, este território foi ampliado com a construção de diversas represas na bacia do Rio Piracicaba, formando o chamado “Sistema Cantareira”.
Em 1968, concomitantemente à criação da Operação Bandeirante (OBAN), que intensificou a perseguição, prisão, tortura e assassinato sistemático conduzido pelo Estado contra homens e mulheres identificados como subversivos, o governador Roberto de Abreu Sodré criou a COMASP (Companhia Metropolitana de Águas de São Paulo) e o chamado “Plano de Desenvolvimento Global dos Recursos Hídricos das Bacias do Alto Tietê e Cubatão”.
Cinco anos depois, por meio da Lei Estadual n.119, assinada por Laudo Natel, a fusão da COMASP com outras sete empresas resultou na criação da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo).
Como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transamazônica, o Sistema Cantareira fez parte da política levada a cabo pelo governo de Garrastazu Médici, garantindo o banho de parte da população de São Paulo foi garantido à custa do sangue de inúmeros resistentes à ditadura e da morte de inúmeros rios entregues à poluição.
Diante da chamada “crise hídrica”, o que ninguém comentou foi precisamente que a “crise” é a própria história da água transformada em propriedade, desde o século XIX, passando pela ditadura civil-militar, criação do Sistema Cantareira e da concessão à SABESP (renovada, em 2004, durante a democracia) dos chamados serviços públicos de saneamento básico. Em 2013, seu lucro líquido foi de 1,92 bilhões de reais.
Se, no século XIX, a água que corria pelos rios e matas se tornou propriedade do Estado, a partir do século XXI, ela também foi adquirida pela indústria, empresas privadas de saneamento e investidores em agronegócios.
Como expôs o Nu-Sol na flecheira libertária: “o que o governo não se ocupou em divulgar, até agora, é que grande parte do consumo de água (92% em países em desenvolvimento e 90% em países desenvolvidos) é de setores da indústria ou agronegócio (...). Se o racionamento for necessário, você terá que poupar de qualquer maneira. Se você se acostumar a poupar desde já – em nome do bem comum – a chance de revolta numa situação mais crítica, também são quase nulas. Essa é a matemática do (re)banho” (http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira358.pdf).
Entre 2014 e 2015, as campanhas criadas pelo Estado são menos para a garantia da água do que para perpetuar o roubo do curso de certos rios e responsabilizar os chamados consumidores pela possibilidade de falta d’água.
Deste modo, pretende-se estimular cada cidadão a se tornar um chamado “guardião das águas”, apto a monitorar e denunciar o vizinho quanto ao desperdício de água.
Certos anarquistas, como os editores do periódico A vida, em 1914, já alertavam que o roubo de riquezas como as águas, os rios, os mares, a terra, só podia se efetuar pela submissão de quem entregava a própria sobrevivência para se tornar defensor daquele mesmo responsável por sua miséria: o Estado.
O que é produzir?
— É criar uma riqueza.
O que é riqueza?
—É tudo que pode ser útil ao homem.
Então o sol é uma riqueza.
— Sim, como o ar, a água, os peixes, etc.
Mas o sol não é produzido pelo homem.
— Não. Por isso se chama uma riqueza gratuita.
Há outras riquezas gratuitas?
— O ar, a chuva, os rios, os mares.
A terra será uma riqueza gratuita?
— Deveria sê-lo, porque é a matéria natural da produção das riquezas minerais e orgânicas. Mas não é.
Porque não é?
— Porque é possuída por alguns homens em prejuízo da maioria dos homens.
Quem mantém essa propriedade particular?
— O governo, isto é, alguns homens que pretendem dirigir os outros homens.
Qual o meio de que lançam mão para tal fim?
— A lei, e para garantir a lei, o soldado.”

Encarar a chamada crise, portanto, é desvelar que o estado das águas é efeito direto de seu roubo pelo Estado. Não há saídas senão a invenção de outros modos de lidar com a água. Alguns anarquistas experimentam isso, são suas outras histórias até o presente.

domingo, 1 de março de 2015

flecheira.libertária.373

e a quadrilha toda grita: iê, iê, iê, viva a filha da chiquita! 
Em São Paulo, o chamado “carnaval de rua”, para além dos tradicionais foliões, foi ocupado por “militantes do empoderamento” que sugeriram alterações em algumas marchinhas compostas nas primeiras décadas do século passado. Uma militante “consciente” soltou: “imagina que legal estar no bloco das negas empoderadas em vez do bloco da nega maluca?”. A conduta embolorada pipocou cagando regra ali e acolá nos dias de carnaval, mas não acabou com a festa dos descomedidos. Quem goza o carnaval, desde a Chiquita Bacana, passando por sua filha, sabe que bom mesmo é gozar a folia em liberdade, sem se prender a bloco algum. E o melhor é gozar o ano inteiro.
boa noite seu guarda! 
Em uma noite da última semana, três mulheres foram à Cadeia Pública de Nova Mutum, no Mato Grosso. Com elas, levaram cantis cheios de uísque barato, litrões de energéticos e trajes de dominatrix adornados por coleiras bordadas com a palavra ‘polícia’. As três seduziram os carcereiros e lhes serviram doses de uísque misturado com alguma substância. Então, elas abriram as grades que dão acesso às celas internas e soltaram muitos dos encarcerados naquela prisão. A polícia deteve novamente oito presos e os carcereiros machões que tomaram esse inusitado boa noite cinderela. Não se sabe o paradeiro das garotas. Elas não se guardaram, desarmaram as armadilhas e quem sabe não saíram distribuindo bananas para os animais, iê, iê, iê...
http://www.nu-sol.org/flecheira/pdf/flecheira373.pdf

flecheira.libertária.372

quem é o dono? 
Na América Latina um grupo de e-mails coordenado por El Libertario, da Venezuela, existe há mais de 15 anos como fórum pelo qual circulam informações de diferentes grupos, associações, publicações, editoras e jornais do continente. Por ele passam a diversidade das lutas, produções e experiências dos anarquistas latino-americanos. Na última semana esse fórum foi excluído da rede A-Infos, com sede na Espanha, sob a alegação de não corresponder aos “princípios” da dita rede, que alega ser classista e popular. Num momento em que os amigos da Venezuela enfrentam extremas dificuldades financeiras e uma repressão cada vez mais brutal do governo bolivariano, a conduta do A-Infos, expressa um exclusivismo nada libertário. Serão os militantes da A-Infos os donos do verdadeiro anarquismo ou apenas crentes em sua forma correta e exclusiva de praticá-lo e divulgá-lo? Como para o governo da Venezuela, o pastorado deve seguir o ideário do pastor. 
anarquia em kobane 
Kobane, norte da Síria, região de Rojava. A defesa intransigente curda contra as forças da ordem vai muito além da ação do peshmerga — que é liderado pelo presidente do Curdistão iraquiano—, responsável pela captura de Saddam Hussein e do líder da Al-Qaeda Hassan Ghul, informante principal para a Operation Nepturne Spear que matou Osama Bin Laden. Seus militantes também são combatentes governamentais contra o ISIS (Estado Islâmico —EI) e recebem apoio dos EUA. Entretanto, há dois anos uma revolução aconteceu em Rojava. Os anarquistas da Ação Revolucionária Anarquista — Devrimci Anar ist Faaliyet, ou ş DAF — introduziram relações horizontais, fomentam a proximidade entre etnias, combatem o islamismofundamentalista e compõe uma muralha humana contra o avanço do ISIS que provocou sua primeira grande derrota. Trata-se de uma resistência à flor da pele contra o Estado turco, a dissimulação do governo da Síria quanto ao EI, os interesses capitalistas, a contínua repressão aos curdos e ao ISIS. Mas acima de tudo, a invenção de uma nova forma de vida que pode reverter o nostálgico e embolorado sonho nacionalista curdo. 
10 anos... e as mortes continuam 
Há dez anos a missionária Dorothy Stang foi assassinada por pistoleiros a mando de latifundiários no Pará. A placa em sua memória colocada em 2009, encontra-se hoje crivada de balas para lembrar quem e como se manda ali. Dorothy lutava pelos assentamentos Esperança e Virola-Jatobá, reconhecidos pela União após sua morte. Mas as mortes não cessam na região. O Pará é o estado que concentra o maior número de mortes motivadas por disputas de terra, além dos desmatamentos promovidos pelo agronegócio. Pouco importa o resultado jurídico do processo sobre sua morte. Dez anos depois, lembrar a execução é não esquecer que as commodities, orgulho da balança comercial brasileira, são papéis que chegam às bolsas de valores do planeta lavados em sangue. 
baderneiros? 
No Paraná uma mobilização de professores, estudantes e funcionários públicos barrou o pacote de ajustes que seria votado essa semana na câmara estadual dos deputados. Os manifestantes questionavam as prioridades do ajuste, que cortava direitos trabalhistas de professores, como o terço de férias, mas não tocava nos aumentos e benefícios de deputados, secretários e cargos comissionados. A única reposta do governo do Paraná foi chamar os manifestantes de baderneiros e colocar a Tropa de Choque contra eles na entrada do edifício da Assembleia Legislativa. Para o governo, a ordem das coisas deve ser mantida. 
olha o ditador aí, gente!!! 
Não é de hoje que sambas-enredo são vendidos e comprados no carnaval carioca. Esse ano, no entanto, uma novidade. Uma famosa e vencedora escola de samba, que nos anos 1970 fez enredos enaltecendo a ditadura civil-militar brasileira, recebeu uma encomenda: cantar as maravilhas da Guiné Equatorial. A pequena ex-colônia espanhola na África é rica em petróleo e tem um dos povos mais miseráveis submetido a um dos ditadores mais ricos do planeta e que é freguês de empreiteiras brasileiras agenciadas por ex-presidente. Negócios à parte, esse ditador é fã do carnaval do Rio. Daí, a ideia de comprar um enredo por alguns milhões de reais. Uma pechincha para alimentar seu ego revestido de cultura africana. Na transmissão da TV, entre efeitos especiais, coreografias e mulheres siliconadas, a ditadura de lá, ecoando autoritarismos daqui, acabou normalizada entre comentaristas simpáticos e reportagens espertas. Tudo isso coroado por um samba-enredo que exaltou o negro guerreiro africano e a sua liberdade embalados pelo exotismo colonizado e politicamente correto. Eis o negro africano vendido como o guerreiro por natureza e vítima genérica adocicada pelo multiculturalismo. E, assim, o ditador virou, simplesmente, mais um patrocinador, enquanto os passistas ricamente ornamentados declaravam seu orgulho à TV e ejaculavam na passarela seu amor à obediência. Chora cavaco! 

flecheira.libertária.371

verde sem rosa 
Enquanto o chamado pré-carnaval começou a agitar as ruas de São Paulo, um vereador encaminhou ofício aos governos municipal e estadual propondo a suspensão do carnaval com o argumento amenizar a chamada crise hídrica. Quem diria que uma proposta tão cinza e autoritária viria justamente de um vereador sustentável. Em nome da defesa dos recursos do planeta, o vereador expôs que, além de não gostar de carnaval, pretende disseminar autoritariamente o amargor a todos que decidem gozar os quatro dias de festa. Deste modo, não somente atualiza a madame que nos anos 1940 dizia que “a vida piora por causa do samba”, mas também escancara que verde sem rosa, ainda mais na época do carnaval, é muito sem graça. É ideia perniciosa, ou melhor, ideia de jerico. 
rua sem saída 
O carnaval não nasceu nos sambódromos, salões e outros confinamentos. O carnaval irrompeu como rescaldo do “entrudo”, festa que acontecia ao ar livre desde o século XVI até meados do XVIII. O “entrudo” foi proibido inúmeras vezes por autoridades coloniais que identificavam na associação entre escravos e a gente que circulava nas ruas um perigo a ser combatido. A partir do século XIX, com a repressão pelo Estado somada à formação de ranchos e blocos, o “entrudo” cedeu lugar à organização do carnaval, consolidado nos anos 1940, como representação de ideário nacional na ditadura de Getúlio Vargas. O carnaval nasceu da rua. Entretanto, diferente do perigo que já representou, a festa hoje celebrada por variadas mídias como “retomada das ruas” é cada vez mais marcada pela colaboração de parte dos foliões com o Estado, desde a negociação com a prefeitura dos trajetos percorridos pelos blocos até a aceitação passiva da presença da polícia.
a produção da agenda 
A polícia é o principal agente das execuções no Brasil – eis a constatação de relatórios produzidos por agências do governo e organizações internacionais que se dedicam a monitorar a violência no mundo. Nenhuma novidade. Isso todo cidadão deveria saber, mas a grande maioria ignora ou aplaude. É pouco provável que a divulgação dos dados e o “debate” promovido pela imprensa altere algo da rotinização do extermínio, extermínio localizável, pois os mesmos relatórios fornecem o “perfil das vítimas”. Registra-se: elas são preferencialmente jovens. Novamente, a maioria cala ou aplaude. A produção da agenda em torno da qual especialistas se engalfinham é efeito imediato dos monitoramentos planetários e público-privados com seus dados estatísticos e aferição de medidas. O extermínio segue, com os urubus em torno da carniça! 
a tropa dos reformadores 
Produzida a agenda, a tropa dos reformadores se apresenta para a tarefa. Cada um, ou cada grupo de interesse, se diz portador do melhor caminho para cumprir a missão ou a “questão humanitária”, designação mais recorrentemente utilizada para tal missão comum. São políticos, policiais, militantes dos direitos humanos, militantes de movimentos sociais, sociólogos, antropólogos, politólogos, historiadores, especialistas de toda sorte, secretários estaduais e federais de governo, enfim, uma infinidade de pastores laicos ou não que se dizem portadores da solução para o problema da violência (classificado como endêmico pela OMS) e para a “questão da segurança pública”. Essa tropa desfila soluções (armas?) que vão de “mudanças estruturais” ao “choque de gestão e/ou microgestão”. À esquerda ou à direta dos atuais mandatários do governo de Estado, todos estão afinadíssimos com a racionalidade neoliberal. E o extermínio segue, com os urubus em torno da carniça! 
desmilitarizar a língua! 
Em meio à tropa dos reformadores, há quem se diga à esquerda e reivindique a desmilitarização da polícia e a criação de uma força única, como polícia sem adjetivos acompanhando as recomendações da ONU. Como já indicado em hypomnemata 161 (http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=193) essa desmilitarização já está em curso e caminha ao lado da sintaxe aplicada por governos, ONGs e movimentos sociais, com suas estratégias, disputas por posição, lutas por hegemonia e públicos-alvo. Ações que em nada fazem recuar a violência e o extermínio, atributos do Estado. Dizem querer a desmilitarização com palavras velhas ou repaginadas que só fortalecem o que criticam. Como disse certa vez um compositor anarquista, para avançar em algo novo é preciso, antes de mais nada, desmilitarizar a própria linguagem. 
acabar com a cantilena assassina 
Fortaleza, capital do Ceará, já tem mais homicídios que Maceió. Segundo a polícia, a causa são disputas do narcotráfico. Bairros miseráveis, com jovens negros igualmente miseráveis. O novo secretário de segurança, polícia federal e gaúcho como o secretário do Rio de Janeiro, diz que ações no sudeste empurram o tráfico para o nordeste. Ele defende mais efetivos e mais equipamentos. Afirma que em São Paulo a existência do PCC extingue a competição e diminui a violência. A repressão assassina e seletiva não visa acabar com tráfico, mas prender e matar jovens pretos e pobres e, no limite, produzir os chamados "crimes organizados" que se articulem com polícia e Estado em ilegalismos lucrativos e manejáveis. De São Paulo pro Rio pra Maceió pra Fortaleza... A cantilena é sempre a mesma.

flecheira.libertária.370

notícias de ano novo (?) 
O Estado Islâmico avança, decapita, fortalece seu califado e exige indenizações no Oriente Médio. O Boko Haram sequestra, escraviza mulheres e mata na Nigéria. A Al-Qaeda do Iêmen reivindica os assassinatos dos criadores do semanário Charlie Hebdo e de pessoas num supermercado judaico em Paris. O terror transterritorial se amplia e amplifica. A esquerda repaginada volta ao governo da Grécia, depois de acordo com a direita com preocupações sociais. Governos da Venezuela e Estados Unidos aprovam medida relativa ao uso de balas letais em manifestações como atitude humanitária. Pelo Rio de Janeiro proliferam “balas perdidas” surpreendendo cidadãos pelas ruas e casas, como se de fato houvesse um disparo aleatório. E se enfia goela abaixo as toneladas de informações sobre fiscalizações de corrupções. Dizem que a solução não está mais na austeridade econômica, mas em investimentos de infraestrutura. Afinal, os Estados Unidos saíram da crise e o governo brasileiro ajustou seu ministro da Fazenda empossando um engenheiro. Em São Paulo, chove e falta água. No Brasil se constroem hidrelétricas e falta eletricidade... O transporte ficou mais caro, como era de se esperar, e a contestação está mais morna. 
bom rapaz, direitinho... 
Na Europa e nos EUA o medo tem muitos corpos. Um deles está no pavor dos convertidos: rapazes brancos, de famílias cristãs ou laicas que se decidiram pelo islamismo radical. Eles são mais assustadores do que os muitos jovens muçulmanos de procedência africana e asiática que vivem em guetos, periferias, banlieus. Estes sempre foram tidos como perigosos por serem imigrantes, pobres, pretos ou quase pretos. A presença do branco converso e radicalizado ativa demandas por mais controles e punições. Os perdedores radicais de pele branca e cidadania de primeiro mundo explicitam os medos e acionam paranoias. 
matar em nome de... 
Os jovens convertidos ao fundamentalismo transterritorial desprezam o consumismo, os costumes, as liberdades, a democracia liberal e todo o conjunto dos chamados valores ocidentais. Renegam suas pátrias de origem em nome de outra que consideram mais justa, pura, divina. Decidem matar em nome de Alá, do Profeta, da Al-Qaeda, do Estado Islâmico. Querem ser soldados. Se não desertassem de seus países, seriam convocados como soldados, em nome da democracia e das liberdades individuais, para ascontinuadas intervenções diplomático-militares ocidentais no Oriente Médio. Oferecem seus corpos e vontades a servir. Abraçam obediências e se dispõem a morrer em nome da transcendência. 
nova política (?) 
Nas eleições gregas, a vitória do Syriza, coalizão partidária de trotskistas e ecologistas, criada em 2004, reacendeu as esperanças em um sistema político colapsado e desacreditado. Há quem diga que eles são a expressão institucional das mobilizações de rua que agitam o país desde 2006. Assim como o Podemos espanhol, a chamada nova esquerda radical que disputa as eleições cumpre seu velho papel: salvar a crença no sistema de representação e seguir investindo no Estado como campo de racionalização das lutas e categoria do entendimento. A América do Sul viveu esse roteiro idílico na aurora deste século com o nome de Socialismo do século XXI. Resta saber se na Grécia eles serão eficazes em apagar o fogo das ruas. 
antipolítica 
Antes mesmo do anúncio da vitória do Syriza, as associações anarquistas, centros sociais de bairro e grupos autonomistas gregos deram um recado ao governo da nova esquerda radical: “Bem vindos à nova Grécia! Nos vemos nas ruas!”. Há anos trabalhadores, estudantes, desempregados e imigrantes vivem experiências de democracia direta, autogestão de recursos e proteção dos imigrantes contra os grupos neonazistas. Não estão dispostos a trocar isso por uma esperança governamental. Não querem ser o contrapeso regulatório ao governo. Anunciam que fazem outra coisa e não almejam um encantado “outro mundo possível”. Não se contentam com a profanação que precede o reestabelecimento da ordem. 
a velha questão social 
No início do século XX, diante das mobilizações de rua dos anarquistas contra a carestia de vida, um governador paulista declarou que a questão social se trata a patas de cavalo. No começo deste ano, após o anúncio do aumento das tarifas de ônibus e metrô, as mobilizações que levaram 30 mil pessoas às ruas obtiveram uma única resposta do governo e da prefeitura de São Paulo: o deslocamento de um contingente de até 1000 policiais que se esforçaram em “envelopar” as manifestações e, invariavelmente, as dispersavam com bombas de gás e balas de borracha. No entanto, diferente de 2013, o discurso da minoria de vândalos já estava sedimentado. E ainda que jornalistas e outros manifestantes tenham ficado gravemente feridos, a violência policial tirou gradualmente as pessoas da rua. A política do governo foi clara e simples: descer o cacete até eles cansarem de apanhar e dar bônus com passe estudantil restrito. 
não esqueçam os 23 
No final do ano passado um mandato de prisão foi expedido contra 23 ativistas do Rio de Janeiro acusados de associação criminosa e outras ações relacionadas aos protestos que começaram em junho de 2013 e seguiram contra a realização da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014. Três deles estão presos, duas foragidas e 18 respondem ao processo em liberdade. De 2013 para cá se produziu uma quantidade infinita de avaliações e reflexões sobre as jornadas de junho. Mas até agora poucas foram as vozes que apoiaram os 23. Menos ainda são as que notam nesta situação, somada à condenação do morador de rua, Rafael Braga Vieira, o óbvio: todo preso é um preso político! A curiosidade histórica é que a principal testemunha de acusação, que sustenta o caráter não político do processo, o delegado Alessandro, da Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI), possui o mesmo sobrenome do responsável pelo massacre da Comuna de Paris, em 1871: Thiers. Todo preso é um preso político. 
as águas vão rolar 
Diante da “crise hídrica”, o governo do estado de São Paulo anunciou medidas como o reaproveitamento da água da represa Billings, desconto na cobrança das contas para diminuir o consumo, criação de comitê anticrise. Contudo, nenhuma das medidas foi tão eficaz quanto a própria disposição de determinadas pessoas a se tornar o “guardião das águas”. Por meio da publicidade do governo veiculada desde a televisão até redes sociais, diversos condomínios adotaram tal slogan. Em matéria divulgada por um jornal de grande circulação, a moradora de um edifício argumentou que é preciso fiscalizar nos vizinhos desde o número de descargas até o tempo do banho. “Os vizinhos têm de se policiar uns aos outros”, concluiu. Nada surpreendente: em nome da consciência e/ou vida amarga, prolifera a polícia. Mais de 90% da água gasta no Brasil é consumida e sequestrada por indústrias, agronegócios e a deficiência na infraestrutura construída pelo Estado. Entretanto, às vésperas do carnaval, diante de tantos cordatos, é bom lembrar que quem goza a vida em liberdade não se deixa agarrar pela polícia, seja ela de farda ou não. Como o refrão da marchinha, diante de tanta polícia é ainda mais gostoso cantar: “ninguém me agarra/ ninguém me agarra”.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Em dois filmes, a cartografia dos afetos

Cena de “Ventos de Agosto”
Em “Os Amigos”, personagens vivem saga de um dia, numa S.Paulo congestionada e caótica. “Ventos de Agosto” surpreende por imagens fortes e originais
Por José Geraldo Couto, do Blog do IMS
A expressão “cinema dos afetos” se banalizou nos últimos tempos, mas em poucos casos ela é tão apropriada quanto para qualificar a filmografia de Lina Chamie. Seu novo filme, Os amigos, é a prova cabal disso.
Quem conhece os longas-metragens de ficção anteriores da diretora (Tônica dominanteA via láctea) sabe que ela se empenha numa espécie de cartografia afetiva da cidade de São Paulo, por onde se deslocam personagens movidos pela carência e pela potência do afeto.
TEXTO-MEIO
Em Os amigos a ação se concentra num único dia, balizado por dois acontecimentos importantes na vida do arquiteto Theo (Marco Ricca): o enterro de um velho amigo de infância e o aniversário do filho de uma amiga (Dira Paes). Entre um e outro, Theo se locomove por uma cidade congestionada e caótica, em que todas as estações do ano alternam-se no mesmo dia. Essa jornada é entremeada por flashbacks da infância e cenas de uma adaptação teatral da Odisseia representada por um grupo de crianças.
Saga urbana
Desnecessário dizer que a própria Odisseia (o tema do acidentado e perigoso retorno ao lar) e sua versão moderna, o Ulisses de Joyce (“a volta ao dia em oitenta mundos”, para dizer como Cortázar), são a referência e a bússola dessa modesta saga urbana.
Lina Chamie e Marco Ricca na filmagem de “Os amigos”
A habilidade de Lina Chamie consiste em manter coeso e envolvente seu conjunto de focos narrativos (que inclui o pequeno drama da empregada doméstica de Theo, numa viagem de ônibus pela cidade alagada), sem perder o ritmo e a vibração poética.Na dialética entre concentração e dispersão que esse tipo de construção narrativa pressupõe, talvez haja uns poucos momentos dispensáveis e frouxos (como os diálogos com um jovem casal de clientes, no escritório de Theo, ou a discussão deste com um engenheiro sobre a reforma de uma escola), mas em geral o olhar afetuoso e poético da diretora mantém o edifício em pé. Tudo conflui, como se verá, para a sutil e permeável fronteira entre a amizade e o amor (no sentido erótico e carnal da palavra).
Faltou dizer que a música, como sempre no cinema de Lina Chamie, cumpre um papel fundamental nessa ponte entre o cotidiano e o mito atemporal construída pelo filme. Por outro lado, dizer que Marco Ricca e Dira Paes são atores formidáveis é chover no molhado. O que chama a atenção aqui é o visível entrosamento, o prazer de contracenar que traduz lindamente a ternura entre os personagens.
Ventos de agosto
Uma abordagem bem distinta, mas igualmente poderosa, de ambivalentes relações humanas e de interação entre personagens e seu meio encontra-se em Ventos de agosto, primeiro longa de ficção do pernambucano Gabriel Mascaro, conhecido por documentários como Avenida Brasília Formosa Doméstica.
Aqui, acompanha-se de modo distendido – e aparentemente descosturado – o dia a dia de uns poucos personagens num vilarejo no litoral de Alagoas. Jeison (Geová Manoel dos Santos) trabalha catando cocos e, nas horas vagas, pratica uma pesca submarina artesanal, em busca de polvos e lagostas. Sua namorada, Shirley (Dandara de Morais), que já morou na cidade grande, acompanha-o no barco, dirige o caminhãozinho do coqueiral e cuida da avó idosa.
Tudo se passa como que num tempo fora do tempo, em que signos da modernidade (celular, iPod, música pop) convivem com ritmos e costumes arcaicos. Esse contraste ganha realce quando entra em cena um pesquisador (o próprio Mascaro) empenhado em gravar os sons do local, em especial os turbulentos ventos de agosto.
Não ficamos sabendo quem é esse forasteiro, nem o motivo de sua pesquisa. Tampouco sabemos se é dele o cadáver que aparece na praia. O que importa é que o destino desse corpo assume um caráter quase surreal, de humor negro e desconcertante, banhando os personagens numa nova luz.Narrativa aberta
Ao contrário de Os amigos, que acaba por amarrar todos os seus pontos numa narrativa circular, Ventos de agosto permanece aberto, num sentido bastante radical. Parece que o filme poderia continuar indefinidamente, revelando a cada sequência novos aspectos e belezas daquele ambiente físico e humano.
Dito assim, pode-se dar a falsa impressão de monotonia, mas a todo momento uma imagem forte, original e bela – como os relâmpagos que iluminam o mar revolto e os estragos do vento numa noite de tempestade, ou os corpos nus dos jovens amantes filmados do alto sobre os cocos do caminhão – impacta a retina e incendeia a imaginação do espectador. É o que se costuma chamar de epifania.

“A fábrica da loucura e da depressão não acabou”

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Paulo Amarante, precursor do movimento antimanicomial no Brasil, provoca: só mudança cultural profunda pode salvar a reforma psiquiátrica — e o próprio SUS
Entrevista a Bruno Dominguez*, na Revista Rádis
Desde o início da década de 1970, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental, Paulo Amarante, acompanha de perto as mudanças no cuidado às pessoas com transtornos mentais. Mais do que isso, participa ativamente dessas mudanças, como um dos pioneiros da luta antimanicomial no Brasil. Avesso a instituições, como ele mesmo afirma, Paulo orientou-se pelo pensamento daqueles que procuraram fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. “David Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito”, observou, nesta entrevista à Radis. Coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Esnp/Fiocruz) Paulo critica a redução da reforma psiquiátrica a uma simples reforma de serviços. E defende uma reforma da cultura. “É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro”.
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Amarante: “SUS perdeu espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório. Queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços”.
Como surgiu seu interesse pela psiquiatria?
Começou cedo, durante a faculdade [de Medicina], porque meu irmão já era psiquiatra. Meu pai brincava que a Reforma Psiquiátrica era uma briga minha com meu irmão, já que eu parti para a linha antimanicomial, da qual sou um dos fundadores no Brasil. Sempre tive uma aversão muito grande às instituições. Fui do diretório acadêmico, do movimento estudantil secundarista, fui expulso do colégio… Aliás, tenho uma história longa de expulsões; na escola, por causa do movimento estudantil e porque escrevia um jornalzinho com questionamentos, denúncias de situações do colégio, em um momento de ditadura militar. Sempre foi difícil para mim ser enquadrado.
O que encontrou no Hospital Colônia Adauto Botelho, onde travou seu primeiro contato com a Psiquiatria?
Em 1974, fui trabalhar no hospital, em Cariacica, periferia da Grande Vitória (ES). Foi um impacto grande. Na época havia 800 internos, em uma instituição que talvez não pudesse acolher adequadamente nem a metade disso. Muito mau cheiro, ausência de condições mínimas de habitação, descaso, boa parte dos pacientes nus – isso era comum em hospitais e um dos argumentos era que os pacientes não gostavam de usar roupa, uma verdade, depois de tantos anos esquecidos e sem privacidade; mas não usar roupa era um sintoma, uma consequência. Eu e um colega, João Batista Magro, que também éramos músicos, começamos a reunir os internos para ouvir música, quando ainda não se falava em musicoterapia. Então, fui chamado por um diretor, que disse não ser digno para um médico tocar violão em uma instituição, que tirava a seriedade da profissão. Eu respondi que falta de seriedade era aquilo que acontecia no hospital, pessoas desnutridas, abandonadas, nuas, mal cuidadas.
A atividade com música foi intuitiva ou já estavam influenciados por autores?
Intuitiva. Nunca tinha ouvido falar de Franco Basaglia, da antipsiquatria. Ou, talvez, tivesse ouvido, mas dentro da faculdade certamente não – não se tocava e ainda não se toca praticamente no nome desses autores. Quando apresentei o trabalho de conclusão da minha especialização em 1978, no Rio, fui advertido por estar usando autores contrários à Psiquiatra, como Basaglia, David Cooper, Ronald Laing. O título era Pedagogia da Loucura, reputando que os hospitais ensinavam as pessoas a serem loucas. Eu parti da história de um interno que ficou 40 anos no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, com a justificativa de ser supostamente homossexual. Como não havia ninguém para dar lhe alta e, depois, sob o argumento de que não poderia ser cidadão responsável, ficou décadas internado. Também fiz um filme sobre ele, um dos primeiros sobre loucura. O contato com os autores aconteceu quando vim para o Rio, na Uerj, e trabalhando no Hospital do Engenho de Dentro, onde nos reuníamos em grupos de estudos.merdicalizacao 2
Veio para o Rio imaginando que aqui seria diferente?
No último ano da faculdade, em 1976, vim fazer o internato no Rio com essa expectativa. O primeiro contato com o Instituto de Psiquiatria [da UFRJ] não foi ruim. Era uma clínica universitária, com 30 leitos, 15 femininos e 15 masculinos, aquele padrão de enfermaria, com prédio administrativo no meio – sempre houve nessas instituições a preocupação de que os pacientes não fizessem sexo. Eram pacientes de livro, como a gente chama na Medicina, pacientes clássicos: a paciente com sífilis cerebral, o paciente esquizofrênico paranoico com delírio místico. Moravam no hospital porque eram pacientes de aula: quando tinha aula do tema, eles eram levados para a sala, sem qualquer constrangimento.
Se o paciente melhorasse, atrapalhava…
Se tivesse alta, acabava a aula. Alguns citavam os próprios sintomas, já tinham as aulas decoradas. A professora perguntava: “A senhora ouve vozes?” E a paciente respondia: “Ouço, sim, estou ouvindo a voz da senhora”.
A psiquiatra Nise da Silveira trabalhava no hospital nessa época. Havia afinidade entre vocês?
Ela trabalhava em outra linha. Era psiquiatra, mas odiava psiquiatras, como gostava de dizer. E eu respondia: eu também, para provocá-la. A Nise acreditava que o psiquiatra era irrecuperável, e tínhamos que mostrar que estava errada. Os primeiros questionadores da psiquiatria foram psiquiatras: Franco Basaglia, Ronald Laing, David Cooper, Thomas Szasz, Aaron Esterson. No Brasil, também: eu, Pedro Gabriel, Ana Pitta, Jairo Goldberg, todos psiquiatras na fundação do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Era preciso criar uma outra psiquiatria, não uma antipsiquiatria – Basaglia dizia que o termo antipsiquatria podia dar margem a incompreensões. Ele procurava fazer uma psiquiatria centrada no sujeito, não na doença. A psiquiatria errou por focar na doença, fato abstrato, que tomou como fato objetivo, concreto, no modelo das ciências naturais. Cooper observava que a psiquiatria usava o mesmo modelo que estuda pedra, planta e animais para estudar a subjetividade. E na psiquiatria não se tem objeto, se tem sujeito. Nise chegou a buscar pesquisas demonstrando que nossa linha de trabalho estava equivocada. Nós dávamos alta aos pacientes e ela dizia que  eles não tinham preparo para a vida social, que seriam vítima de violência, abuso. A internação representava um certo cuidado, na visão dela. Existem pessoas do campo da reforma psiquiátrica que têm esse pensamento, mas instituição nunca é proteção; favorece mecanismos de violência, controle, perda de autonomia.
O que os levava a defender a internação?
A pesquisa mostrou que, quando aumentávamos as altas, aumentavam também as reinternações, e o dado estava correto. Por isso, tivemos a preocupação de criar uma rede forte de suporte externo, não só de serviço de saúde, mas também familiar. Nise teve papel importante, porque mostrava que outras formas de trabalho eram efetivas. Ela marcou por se recusar a aplicar eletrochoque, por não acreditar que medicação era o grande tratamento. Mas tivemos que tensionar com ela, porque isso tudo poderia ser feito também fora dos hospitais. No final da vida, ela nos apoiou.
Como era a conjuntura nessa época pré-mobilização dos trabalhadores de saúde mental?
De 1976 em diante, começou a haver um movimento de mudança no sindicalismo médico e no conselho de Medicina no Rio. Um exemplo foi a criação do Reme, Renovação Médica, em que médicos questionavam a medicina. Faziam parte nomes importantes, como Carlos Gentile de Mello, que denunciava a mercantilização da saúde, e outros mais jovens, como Sergio Arouca e Reinaldo Guimarães. No mesmo ano, fiquei sabendo que haveria uma reunião para fundar um centro de estudos de saúde, e se criou o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos em Saúde]. De uma vez só, conheci [José Gomes] Temporão, Arouca, Reinaldo [Guimarães], Eleutério  Rodriguez Neto, Eric Jenner, Hésio [Cordeiro]. Sempre gostei de escrever, tinha uma máquina portátil, como se fosse o notebook de hoje, e logo me viram como redator do grupo. Tenho comigo o projeto original do SUS – A questão democrática na área da saúde –, que levamos ao simpósio na Câmara dos Deputados, em outubro de 1979. E apresentei no mesmo dia o documento Assistência psiquiátrica no Brasil: setores público e privado, o primeiro da reforma psiquiátrica brasileira. Dentro do Cebes, surgiu a ideia de se criarem núcleos de saúde do trabalhador, saúde da mulher e saúde mental – fiquei responsável por este último. Era um cenário muito favorável, chegamos a ganhar o Conselho de Medicina por um período.
Como se deu sua demissão da Divisão Nacional de Saúde Mental (Dinsam), junto a dois colegas, episódio que se tornou marco do movimento?
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Em 1978, comecei a trabalhar na Dinsam e notei ausência de médicos nos plantões, deficiências nutricionais nos internos, violência (a maior parte das mortes causada por cortes, pauladas, não investigadas e atribuídas a outros pacientes). Investigamos e as conclusões deram muito problema. Outra denúncia era da existência de presos políticos em hospitais psiquiátricos, inclusive David Capistrano, pai, um dos fundadores do Partido Comunista – e existem fortes indícios de que era ele mesmo. Havia médicos psiquiatras envolvidos em tortura e desaparecimento de presos políticos – a Colônia Juliano Moreira [no Rio] tinha um pavilhão onde só entravam militares. Fui chamado na sede da Dinsam e demitido, com mais dois colegas. Oito pessoas, entre elas, Pedro Gabriel Delgado e Pedro Silva, organizaram um abaixo-assinado em solidariedade a nós. Depois, mais 263 pessoas foram demitidas. Isso caracterizou um movimento. Conseguimos manter a crise da Dinsam, como chamávamos, na imprensa por mais de seis meses. 
E essa discussão ganhou corpo…
Em 1978, dois eventos importantes aconteceram, um deles, o Congresso Brasileiro de Psiquiatria, no início de outubro, em Camboriú (SC). Era um evento clássico de Psiquiatria. Nós nos reunimos em um grupo e o invadimos. Já havia uma articulação em rede: em Minas Gerais, o João Magro; na Bahia, Naomar de Almeida Filho e Luiz Humberto, que depois foi deputado federal; Ana Pitta, em São Paulo. Um médico conhecido, já idoso, Luiz Cerqueira, que deu nome ao primeiro Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no Brasil, levantou questão de ordem para que o congresso reconhecesse a importância do nosso movimento, e esse ficou conhecido como o congresso da abertura. No Rio, houve o 1º Simpósio de Políticas, Grupos e Instituições, organizado por Gregorio Baremblitt e Chaim Samuel Katz, dois psicanalistas que vinham rompendo com a psicanálise, até então restrita aos médicos. Eles trouxeram para a discussão Franco Basaglia, Thomas Szasz, Erving Goffman,  David Cooper, Ronald Laing e Shere Hite, com grande destaque na imprensa.
A comunicação está sempre presente nas suas respostas — cobertura da mídia comercial, denúncias da mídia alternativa, experiência pessoal com comunicação e saúde, a apropriação por grupos de pacientes…
Sempre gostei de escrever. Criei logo um jornalzinho do movimento, com letras recortadas e coladas uma a uma para formar os textos, porque não tinha equipamento. Como eu estava proibido de entrar em qualquer hospital da Dinsam, ia para a porta distribuir o jornal. Buscamos a apropriação dos meios pelos pacientes, como parte do entendimento de que eles são sujeitos, atores políticos. Daí a ideia de experiências como a TV Pinel [no Rio de Janeiro], a rádio e a TV Tan Tan [em Santos]. Muitos profissionais ainda trabalham a partir da concepção de que fazer jornalzinho é terapia, e não é. É intervenção política, de cidadania, são outras formas de mostrar o mundo, de pensar a diversidade. Hoje existem vários jornais impressos, tevês e rádios comunitárias, com nomes muito criativos, como Antena Virada, TV Parabolinoica e Rádio Delírio Coletivo. São iniciativas importantes, que constroem uma outra noção de identidade desses sujeitos.
Quando se deu sua vinda para a Fiocruz?
Fui convidado várias vezes, mas recusava. O Arouca me chamou em 1982, para trabalhar em planejamento, e eu não conseguia me soltar da saúde mental. Trabalhei com o Arouca quando ele assumiu a secretaria de Saúde do estado do Rio [em 1987], com a tarefa de abrir 33 centros de saúde mental. Quando deixou o cargo, ele e Sonia Fleury me convidaram a criar um núcleo de saúde mental na Fiocruz e aceitei. A Sonia tinha acabado de lançar Reforma sanitária: em busca de uma teoria e, em analogia, eu escrevi Reforma psiquiátrica: em busca de uma teoria. Eu falava que não se deveria reduzir a reforma psiquiátrica a uma reforma de serviços e nem a uma simples humanização do modelo manicomial, ideia que persiste até hoje — “ser mais humano com os coitadinhos”. Defendia que era preciso trabalhar com protagonismo, autonomia; ver esses sujeitos como sujeitos diversos, porém sujeitos. É um desafio dos Caps ainda hoje. Deslocam a tutela para tecnologias menos violentas e invasivas, mas ainda tutelam. Há muita dificuldade em aceitar que as pessoas são diferentes e devem ser diferentes. Minha luta atual é que se pode até suspender a medicação. Isso para médico é um absurdo: eles não acreditam que se possa ser um psicótico sem tomar antipsicótico. É um mito que a indústria farmacêutica criou, que só há um jeito dele se manter vivo, tomando remédio.
O movimento pedia a superação do modelo psiquiátrico. Isso parcialmente se deu na assistência, mas a medicalização continua.menos capsulas
Há uma confusão sobre a superação do modelo assistencial hospitalar asilar manicomial, que está em processo razoável, embora hoje haja novas formas de institucionalização, como as comunidades terapêuticas e as instituições religiosas. O Luiz Cerqueira calculava que o Brasil tinha de 80 mil a 100 mil leitos psiquiátricos no final dos anos 1970. Hoje, são em torno de 30 mil leitos. De fato, reduzimos. Criamos Caps, estamos criando projetos de residências, que já são 2 mil, projetos de economia solidária, projetos culturais. Chamamos de dispositivos de saúde mental. Mas nosso trabalho se concentrou na desospitalização. Quando falamos em desmedicalização, não estamos falando em diminuição do medicamento, e sim na diminuição do papel da medicina. Queremos diminuir a apropriação que a medicina faz da vida cotidiana, o discurso médico sobre a vida. Isso não conseguimos. Um desafio hoje da reforma psiquiátrica é a formulação discursiva muito médica. Por exemplo: as pessoas são contra o manicômio, mas não abrem mão do conceito de depressão tal qual utilizado pela indústria farmacêutica. 
Como lidar com o que se chama de epidemia de depressão?
Temos que pensar até que ponto o próprio aparato psiquiátrico está produzindo essa epidemia — uma discussão central, que não é feita devido ao controle da produção de conhecimento pela Psiquiatria e pela indústria farmacêutica. Boa parte da chamada crise mundial de aumento da depressão é produzida pela Psiquiatria, que não está se preparando para evitar, mas para produzir a depressão. Os relatórios contribuem para que pessoas se identifiquem como depressivas. Os intelectuais orgânicos da indústria farmacêutica têm muito claro que é possível aumentar o número de diagnósticos de depressão ensinando a ser depressivo. “Você chora muito? Tem ideias de morrer?”. Isso produz identificação e as pessoas não dizem que estão tristes e sim que estão depressivas. [Michel] Foucault ensinou que a pesquisa diagnóstica produz diagnóstico. É a produção social da doença. 
No final dos anos 1980 começam a surgir iniciativas alternativas ao manicômio: em 1987 o primeiro Caps e, em 1989, a reforma em Santos (SP). Como se pensavam essas novas formas de cuidado?
As alternativas — ambulatórios, hospitais-dia, centros de convivência — começaram a aparecer no início dos anos 1980, quando deixamos de ser oposição e fomos para o Estado de alguma forma. Em 1987, foi criado o primeiro Caps, em São Paulo, com o nome do Luiz Cerqueira. Mas ainda não havia essa concepção de rede, território e integralidade. O marco inovador foi a experiência de Santos, em 1989. A cidade tinha sua primeira prefeita eleita democraticamente, Telma de Souza, de esquerda — antes havia prefeitos biônicos, indicados pelo Estado. E ela fez uma revolução na prefeitura, nas políticas públicas como um todo. Na saúde, o secretário era David Capistrano Filho, mentor intelectual do Cebes, uma expressão do movimento sanitário. Ele levou à frente uma intervenção na clínica Anchieta, que tinha alta mortalidade. Não quis reformar, mas sim criar uma estrutura substitutiva e territorial — foi a primeira vez que apareceram essas expressões. Hoje se fala muito em rede substitutiva e territorial. A primeira gestão municipal que trabalhou com o projeto aprovado do SUS, ainda que não regulamentado, foi a de Santos. 
Como avalia a participação social nas políticas de saúde mental?
A participação está diminuindo. O SUS perdeu o espírito da reforma sanitária, como projeto civilizatório, e virou mais um sistema de saúde. E o mesmo aconteceu na reforma psiquiátrica: queríamos transformar a vida, a relação da sociedade com o comportamento do outro, e ficamos restritos a transformar os serviços. Houve redefinição do usuário, tido não mais apenas como paciente, mas que não chegou a ser o ator social que queríamos ter — é ator coadjuvante das políticas. Vai nos congressos, nos conselhos, mas não tem força.
E como está a rede de atenção psicossocial hoje?
Desde o início desse processo, levantei a preocupação com os Caps funcionando em horário comercial, descontextualizados do território, como ambulatórios multidisciplinares. Por que fazer uma oficina de teatro dentro do Caps em vez de usar o teatro da cidade? E não basta transformá-los em Caps 24 horas. Vão ser minimanicômios, quando deveriam ser a substituição. É necessário mudar as bases conceituais dos serviços: as noções de doença, terapia, cura, tratamento. Se o ideal for a remissão total dos sintomas, não vai ser alcançado, com ou sem medicamento. Sempre se tem a ideia de uma normalidade abstrata. E o mais cômodo é medicar, apontar que a doença é do indivíduo, está nos neurotransmissores, fazer o controle bioquímico e tutelar pelo resto da vida. 
Que reflexões sua doença recente, um câncer e complicações decorrentes, provocou sobre a institucionalização?
A doença me marcou muito, por minha posição anti-institucionalizante. Minha experiência com hospitais é muito negativa: a relação do aparato médico com o sujeito. Me rebelei muito, questionei, pela perda de autonomia, de identidade. Os profissionais infantilizam e objetificam o paciente. Não sei se a expressão é humanizar, porque humanização me parece mais um conjunto de rituais. Defendo a mudança profunda na qualidade da relação com as pessoas que estão em tratamento. E fiquei pensando nos caminhos que escolhi. Depois da crise da Dinsam, as pessoas foram voltando para o atendimento clínico e eu segui com a discussão do direito à saúde. A ideia de reforma psiquiátrica é limitada, porque o que eu buscava era uma reforma da cultura. É culturalmente que pessoas demandam manicômio, exclusão, limitação do outro. Busquei a transformação da relação da sociedade com a loucura. E mudar cultura é um processo longo, muito demorado.

*Participaram Rogério LannesEliane BardanachviliElisa Batalha e Justa Helena Franco

FOUCAULT – PANÓPTICO [OU, “A VISIBILIDADE É UMA ARMADILHA”]

03/12/2014 by 

panóptico2Através de vários mecanismos surge o homem moderno. Os processos de subjetivação são vários: a família nuclear, a escola, o exército, o hospital e caso tudo falhe, as prisões. Foucault se debruçou sobre o modelo de funcionamento destas instituições e dentre suas conclusões percebeu que todas funcionavam através do modelo panóptico, figura arquitetural idealizada por Jeremy Bentham.
O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente […] A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha” – Foucault, Vigiar e Punir
Este dispositivo funciona dissociando o par ver-ser visto. Nesta nova forma de exercer o poder, você é sempre visto, mas não pode ver a torre central que te vigia. Cada preso, aluno, trabalhador, paciente, etc., é colocado em uma célula, uma divisória permanece isolado de outros estímulos e pode ser constantemente observado. Desta forma, os alunos podem estudar melhor, os trabalhadores não organizam greves e os presos não se revoltam. A multidão, lugar de trocas e de afetos, é transformada em uma coleção de múltiplas individualidades, mas separadas por uma fina divisória que não nos permite acessar por completo o diferente.
O homem moderno não se esconde, pelo contrário, se torna constantemente visível, e por consequência, plenamente individualizado. O formato panóptico de exercer o poder prescreve a cada um seu lugar. Um poder onipresente e onisciente subdivide e distribui cada um de acordo com o que lhe pertence, suas capacidades, sua história, sua origem. Através dos recursos para o bom adestramento: olhar hierárquico, sanções normalizadoras e exames, o poder é capaz de, mais que reprimir ou corrigir, produzir.
Trata-se de um poder espacial, ele age sobre as multiplicidades, elas são confusas e indóceis, é preciso discipliná-las para obter produtividade delas. “O panóptico é um zoológico real, o animal é substituído pelo homem” (Foucault, Vigiar e Punir). O poder funciona reduzindo as velocidades, fixando cada um em uma função social, trata-se de colar um rosto em sua cabeça: advogado, médico, proletário, estudante, louco. Fim do nomadismo, fim dos errantes e dos perdidos, fim das experimentações…
E para se exercer, esse poder deve adquirir o instrumento para uma vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível, mas com a condição de se tornar ela mesma invisível” – Foucault, Vigiar e Punir
"Se você for um usuário-padrão, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, o que está pesquisando e, possivelmente, sua preferência sexual, sua religião e suas crenças filosóficas" - Julian Assange, Cypherpunks - Liberdade e o Futuro da Internet
“Se você for um usuário-padrão, o Google sabe com quem você se comunica, quem você conhece, o que está pesquisando e, possivelmente, sua preferência sexual, sua religião e suas crenças filosóficas” – Julian Assange, Cypherpunks – Liberdade e o Futuro da Internet
Sim, somos constantemente vigiados, e tudo pela melhor forma possível de poder, aquele que se tornou invisível, imperceptível, confiável. Cada vez que mandamos uma mensagem de nosso celular, ligamos a televisão, acessamos o facebook e o google, mandamos informações nossas que são armazenadas em um banco de dados. Criticamos o big brother, mas não percebemos que estamos imersos em um imenso big brother anônimo, difuso. “O panóptico é um local privilegiado para tornar possível a experiência com homens, e para analisar com toda certeza as transformações que se pode obter neles” (Foucault, Vigiar e Punir).
- Paweł Kuczyński
– Paweł Kuczyński
O panóptico não foi construído como um modelo megalomaníaco, mas está aí, sua essência constitui o poder disciplinar moderno. Códigos de barras, cartões de crédito, carteira de identidade, câmeras de vigilância, telefones monitorados. Ele se espalha nas relações, cria raízes nas instituições, ultrapassa seus limites, entra em nossa própria cabeça.
Foucault chamou este modelo disciplinar de arquipélago carcerário, nome bonito para dizer que transitamos entre uma prisão e outra. Neste arquipélago estende-se uma complexa rede de comunicação: psicólogos, conselhos tutelares, policiais, professores, gerentes, pais. Somos levados de uma instituição a outra. A partir do momento que nossos corpos já foram suficientemente docilizados na escola, estamos prontos para a universidade, ou para o trabalho, dependendo de cada caso específico. A disciplina não é a instituição, é o modelo que poder utiliza em seus processos de subjetivação.
Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilâncias: sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração de troca, processa-se o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos da comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo de sinais define os pontos e apoios do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos” – Foucault, Vigiar e Punir
Nossa sociedade nos dá a ilusão de um espetáculo porque estamos embaixo dos holofotes constantemente, mas aos olhos do poder ela é uma máquina de inquérito e confissão. “Mostrem-se! Você são livres! Contem tudo! Estamos interessados em você! Queremos saber mais!” … a visibilidade é uma armadilha:
Somos bem menos gregos que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem no palco, mas na máquina panóptica, investidos por seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens” – Foucault, Vigiar e Punir
A disciplina ordena as multiplicidades humanas, as individualiza e as produz em série. O nomadismo morre, o corpo-dócil nasce. A vigilância é interiorizada, o sujeito castra a si mesmo, se sabota. “O que vão pensar? O que vão dizer?“. O “rei quis” torna-se a obediência mecânica, “não pode porque não pode!”, um reflexo de submissão. Temos a constante impressão de que estamos sendo observados (e será que não estamos?), a vergonha alheia já não é mais tão alheia.
Como escapar? Como fugir desta máquina que agora age dentro de nós mesmos? Repetimos: a visibilidade é uma armadilha. Existe algum dispositivo possível? Sim, as zonas de desconhecimento, de experimentação, espaços de indefinição, estranhamento, do novo e do anômalo, a coxia é mais criativa que o palco! Se logo lhe colocam um nome, fuja, se esconda, finja, faça o contrário. Se logo te definem, experimente-se, surpreenda-se.
Não se deixar capturar é o caminho mais curto para si mesmo. Desconhecer-se é o melhor meio de ultrapassar-se. Você não é o número de sua identidade, você não é a sua conta no banco, você não é a marca de camiseta que usa. Descobriram seus segredos? Crie novos! Já sabem os seus caminhos? Trace linhas de fuga. Corra mais rápido, se torne nômade. Ande pelo escuro, com prudência, caso contrário vão te roubar, ou melhor, vão te produzir! Devenha imperceptível!
Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? – Foucault, Vigiar e Punir
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