verde sem rosa
Enquanto o chamado pré-carnaval começou a agitar as ruas de São Paulo, um vereador encaminhou ofício
aos governos municipal e estadual propondo a suspensão do carnaval com o argumento amenizar a
chamada crise hídrica. Quem diria que uma proposta tão cinza e autoritária viria justamente de um vereador
sustentável. Em nome da defesa dos recursos do planeta, o vereador expôs que, além de não gostar de
carnaval, pretende disseminar autoritariamente o amargor a todos que decidem gozar os quatro dias de festa.
Deste modo, não somente atualiza a madame que nos anos 1940 dizia que “a vida piora por causa do
samba”, mas também escancara que verde sem rosa, ainda mais na época do carnaval, é muito sem graça. É
ideia perniciosa, ou melhor, ideia de jerico.
rua sem saída
O carnaval não nasceu nos sambódromos, salões e outros confinamentos. O carnaval irrompeu como
rescaldo do “entrudo”, festa que acontecia ao ar livre desde o século XVI até meados do XVIII. O “entrudo” foi
proibido inúmeras vezes por autoridades coloniais que identificavam na associação entre escravos e a gente
que circulava nas ruas um perigo a ser combatido. A partir do século XIX, com a repressão pelo Estado
somada à formação de ranchos e blocos, o “entrudo” cedeu lugar à organização do carnaval, consolidado nos
anos 1940, como representação de ideário nacional na ditadura de Getúlio Vargas. O carnaval nasceu da rua.
Entretanto, diferente do perigo que já representou, a festa hoje celebrada por variadas mídias como
“retomada das ruas” é cada vez mais marcada pela colaboração de parte dos foliões com o Estado, desde a
negociação com a prefeitura dos trajetos percorridos pelos blocos até a aceitação passiva da presença da
polícia.
a produção da agenda
A polícia é o principal agente das execuções no Brasil – eis a constatação de relatórios produzidos por
agências do governo e organizações internacionais que se dedicam a monitorar a violência no mundo.
Nenhuma novidade. Isso todo cidadão deveria saber, mas a grande maioria ignora ou aplaude. É pouco
provável que a divulgação dos dados e o “debate” promovido pela imprensa altere algo da rotinização do
extermínio, extermínio localizável, pois os mesmos relatórios fornecem o “perfil das vítimas”. Registra-se: elas
são preferencialmente jovens. Novamente, a maioria cala ou aplaude. A produção da agenda em torno da
qual especialistas se engalfinham é efeito imediato dos monitoramentos planetários e público-privados com
seus dados estatísticos e aferição de medidas. O extermínio segue, com os urubus em torno da carniça!
a tropa dos reformadores
Produzida a agenda, a tropa dos reformadores se apresenta para a tarefa. Cada um, ou cada grupo de
interesse, se diz portador do melhor caminho para cumprir a missão ou a “questão humanitária”, designação
mais recorrentemente utilizada para tal missão comum. São políticos, policiais, militantes dos direitos
humanos, militantes de movimentos sociais, sociólogos, antropólogos, politólogos, historiadores, especialistas
de toda sorte, secretários estaduais e federais de governo, enfim, uma infinidade de pastores laicos ou não
que se dizem portadores da solução para o problema da violência (classificado como endêmico pela OMS) e
para a “questão da segurança pública”. Essa tropa desfila soluções (armas?) que vão de “mudanças
estruturais” ao “choque de gestão e/ou microgestão”. À esquerda ou à direta dos atuais mandatários do
governo de Estado, todos estão afinadíssimos com a racionalidade neoliberal. E o extermínio segue, com os
urubus em torno da carniça!
desmilitarizar a língua!
Em meio à tropa dos reformadores, há quem se diga à esquerda e reivindique a desmilitarização da polícia e
a criação de uma força única, como polícia sem adjetivos acompanhando as recomendações da ONU. Como
já indicado em hypomnemata 161 (http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=193) essa
desmilitarização já está em curso e caminha ao lado da sintaxe aplicada por governos, ONGs e movimentos
sociais, com suas estratégias, disputas por posição, lutas por hegemonia e públicos-alvo. Ações que em nada
fazem recuar a violência e o extermínio, atributos do Estado. Dizem querer a desmilitarização com palavras
velhas ou repaginadas que só fortalecem o que criticam. Como disse certa vez um compositor anarquista,
para avançar em algo novo é preciso, antes de mais nada, desmilitarizar a própria linguagem.
acabar com a cantilena assassina
Fortaleza, capital do Ceará, já tem mais homicídios que Maceió. Segundo a polícia, a causa são disputas do
narcotráfico. Bairros miseráveis, com jovens negros igualmente miseráveis. O novo secretário de segurança,
polícia federal e gaúcho como o secretário do Rio de Janeiro, diz que ações no sudeste empurram o tráfico
para o nordeste. Ele defende mais efetivos e mais equipamentos. Afirma que em São Paulo a existência do
PCC extingue a competição e diminui a violência. A repressão assassina e seletiva não visa acabar com
tráfico, mas prender e matar jovens pretos e pobres e, no limite, produzir os chamados "crimes organizados"
que se articulem com polícia e Estado em ilegalismos lucrativos e manejáveis. De São Paulo pro Rio pra
Maceió pra Fortaleza... A cantilena é sempre a mesma.
Nenhum comentário:
Postar um comentário