Em narrativa não-linear e refinada, filme de Philippe Barcinski escancara fragilidade humana e relembra: “a vida é ferida absurda”
Por José Geraldo Couto, no blog do IMS
Os seis ou sete minutos iniciais de Entre vales, de Philippe Barcinski, estão ali para produzir, por meios essencialmente cinematográficos, um desconcerto no espectador.
Primeiro um homem (Ângelo Antônio) dirige perigosamente numa estrada, à noite, entornando uma garrafa de bebida. Em seguida, esse mesmo homem aparece num lixão, disputando restos de material reciclável com outros catadores. Por fim, o mesmo Ângelo Antônio surge limpinho, bem vestido e barbeado, como um engenheiro que visita com o filho (Matheus Restiffe) e com um sócio o local onde se constrói um aterro sanitário.
Por um momento, chegamos a pensar que talvez sejam sósias, ou gêmeos apartados, todos vividos por um único ator. Mas logo percebemos que se trata de três momentos da vida do mesmo homem, embaralhados fora de ordem. Por fim compreenderemos que o momento da estrada é a passagem entre os dois extremos existenciais do personagem, a travessia de um vale a outro. O restante do filme se encarregará de preencher as lacunas, dar sentido a esses bruscos contrastes.
Fragilidade humana
Se fosse contada de modo linear, essa história seria uma tragédia familiar de andamento e desfecho previsíveis. Mas Philippe Barcisnki aposta tudo na força das imagens, na capacidade do cinema de comprimir, dilatar e reordenar o tempo para produzir um modo diferente de apreensão do mundo, de expressão das emoções.
Desde seu primeiro curta, A escada (1996), até seu longa Não por acaso (2007), Barcinski sempre experimentou formas diferentes de expor a fragilidade humana, a vulnerabilidade do indivíduo diante da dureza do universo circundante.
Entre vales é coerente com essa busca. Seu modo de encenação nunca é vulgar, nunca se serve do diálogo como muleta narrativa, nem da música como muleta sentimental. É a superfície do mundo, a pele dos personagens, que constrói sua dramaturgia.
Tomemos dois exemplos, logo do início. Da forma como é filmado, o lixão em que chafurda o personagem de Ângelo Antônio ganha vida e movimento, é quase um ser com vontade própria. E o plano silencioso em que vemos o filho do engenheiro caminhar sobre a lona que cobre o vale do futuro lixão sugere, por sua delicadeza, toda a fugacidade da existência. A vida é um sopro, como diz o tango. Leveza e angústia juntas, como nos filmes de Gus Van Sant centrados em personagens adolescentes (Elefante, Paranoid Park).
O lugar do descarte
Há, além do mais, uma evidente analogia entre o lixo – aquilo que é descartado como inútil, indesejado, sem valor de troca – e a situação do protagonista numa sociedade que valoriza os que produzem, os que lucram, os que vencem. Não à toa, o nome do personagem é Vicente, que em sua origem latina significa “vencedor”, “conquistador”. Depois da queda, ele passa a se chamar Antônio, como o ator que o encarna, como se tivesse sido despojado até mesmo da fantasia, da ficção, do faz de conta.
O que enfraquece um pouco essa bela e potente narrativa audiovisual é o momento da redenção, que acaba por converter uma tragédia absoluta em parábola moral, a um passo da mensagem edificante. A própria divulgação do filme tem enfatizado essa ideia de “reconstrução”, de “segunda chance”. Os homens também são recicláveis, afinal de contas. Talvez isso seja visto como necessário para tornar mais suportável aquilo que o filme nos mostra com todas as letras, ou antes, com todas as imagens: que “a vida é uma ferida absurda”, como já dizia outro tango memorável.
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