”Carrego um girassol rutilante / sobrevoo / as esquinas da Augusta / disparo / amores aéreos / vestígios de arte contemporânea”
Por Chiu Yi Chih*
Performance em Sampa
uma ponte se evapora: só me resta
seguir este velho
prisioneiro das serpentes,
Filoctetes sangrando no pé esquerdo.
pássaro-escultor
navegando nos rostos de todos os mortos,
carrego um girassol rutilante
sobrevoo
as esquinas da Augusta
disparo
amores aéreos,
vestígios de arte contemporânea:
Hélio Oiticica e José Agrippino
em navios semialvejados – tudo se cria
nesse delgado retângulo: as cabeças
costuradas/amarradas
aos monturos
como turbantes azuis da desconfiança.
eis o nosso paraíso enrodilhado de infernos:
máquina desejante de eterna insônia.
monstro de ossos esverdeados
arregalando um olho triplo. alguém me vê
debaixo de uma usina e eu danço na rua
em meio aos dragões violetas do travesti.
estou sempre atrás, acima, além,
sob, sobre, entre as lajes do meu corpo –
sucata que perfura um negro arco-íris.
- do livro “Naufrágios” (Editora Multifoco)
TRANSCURSO
próximo aos estiletes de fogo que cospem lâminas finíssimas de chumbo ou avançando por detrás da escaramuça das algas insufladas pelas lascas eufóricas tal como o transístor das risadas coléricas precipitando-se às melodias de ondas incestuosas num revolutear de cristas incontáveis a contrair os minutos através das emanações de uma escada quase ovalada à espera de que todos os seres com aquelas flatulências possam se esgueirar acima dos estuques de gesso onde os fungos das trêmulas ancas se desatrelam com as lagartas de línguas enrubescidas embora nem sempre as lamentações de um cadáver insepulto se mantenham à distância dos edifícios esquálidos de certas plenitudes irreais enquanto assim um semi-animal humano parece estar rastejando nos lábios do cimento adormecido durante a sua translação para além das bifurcações de outras ferrovias que vão se perfilando às cegas sobre as reminiscências das válvulas da matilha atacada pelas fossas de um velho armazém como se apenas as suas mandíbulas inferiores pudessem se rejuvenescer com a plumagem dos túmulos e as cordilheiras de uma faísca submersa
BUDA-EXU
uma guerra se trava entre os clavicórdios de teus ossos porém mais do que dilúvio de sangue ou fome indiscriminada talvez seja apenas a inexprimível eclosão de outro império irrefletido pois tampouco se trataria de mero deslocamento de teus nervos senão de algo mais abstrato e desastroso assim como se um súbito inverno voraz viesse a irromper por si mesmo no distúbio iminente das consciências ou como se o próprio tempo estivesse sendo esmagado por debaixo das águas engomadas de tua astúcia eclipsada tal como se aquela falha inerente jamais pudesse ser estancada no momento em que todas as paredes ovaladas se arqueiam diante do edifício em destroços onde ninguém pretende refazer os venenos da tua carne assolada pelo pó das trevas ao mesmo tempo que nada parece se reconciliar com os alumínios de tua miséria mal reconquistada quando apenas o coração lacerado se alastra entre farrapos recalcitrantes tanto nesta língua atravessada pelos olhos calcinados como naquela viela de escamas enrugadas onde cada pétala se estilhaça com as estrelas esfarrapadas de tuas feridas impossíveis
PROVAÇÃO
sobre a geleira da ácida dissimulação os alvéolos enrouquecidos daquela máquina soluçam com os arquipélagos de uma avalanche enquanto num fulgor excruciante o dorso do lince se galvaniza acima dos crânios de lobos escabrosos assim como se num relevo furtivo a laringe pudesse arrastar um semblante sem esperança por detrás daquela gota cinzenta que começa a gemer debaixo do surdo vendaval dos tigres mumificados ao mesmo tempo que nessa órbita sonífera dos lábios desterrados ao longo das formigações das pupilas encharcadas se exalam as madressilvas de lídima voragem tal como se essa indecente montanha de ilegível sexo houvesse deglutido aquela macieira no centro de uma placenta de minúsculas anfíbias ainda que alguns caramujos jamais consigam se acasalar sob as maledicências do piano selvagem quando na fermentação de tantas lamúrias fibrosas os canivetes estampados das pérolas poderiam se exilar entre os estertores do mármore e o despertar das videiras da morte
TRANSVERSO
reclinando-se ao lado da neblina ferrosa que oscila em lívidas ramificações ou mesmo tropeçando com as raízes das ladeiras encalhadas como se naqueles artelhos de zinco escarpado reverberassem em uníssono as infatigáveis ofuscações de uma savana ao mesmo tempo que se desviam de sua rota os mastros dos ilícitos bárbaros a tal ponto que não soubéssemos mais por onde se desguarneceria a superfície dos gritos embalsamados sob o insulto dos embriões tempestuosos quando num abraço de cálidas difamações a lágrima escondida de sua face volumosa se revolve por debaixo dos músculos esfaimados num breve regozijo em que os ciprestes de contínuas insolências se comprimem acima dos azulejos do columbário sacrílego enquanto as gengivas se acorrentam sob aquela revoada de manguezais fustigados pela penumbra dos estames gordurosos e os córregos de lama violeta emergem dos cílios intumescidos como maremoto suspirando com os ladrilhos do vento assim que num átimo escorraçado uma estátua em flanelas negras se despedaça diante dos rochedos inescrutáveis onde mal vislumbramos os corações azulados esfumaçando-se nos hieróglifos com as dunas de cães evadidos ao norte das intempéries pois tão velozes se ascendem aos turbilhões as feridas gigantescas do espaço no meio das coagulações de carvão escarificado que uma sombra de madrepérola se desvencilha sob o pavilhão das flechas rugosas num inviolável aquário de anzóis estirados debaixo da litigiosas partículas sem que ninguém possa desencravar aquele baralho emplumado de desmesurados esfíncteres no mesmo instante em que cada batida solar dilacera as presilhas do ínfero meteoro com súbitas peripécias ao longo das presas cristalinas por onde as trevas se desmancham minuciosamente através das malhas escalpeladas pelas escotilhas encanecidas de um outono desossado
Os poemas “Buda-Exu”, “Transcurso”, “Provação” e “Transverso”são do livro inédito “Metacorporeidade”.
*Chiu Yi Chih – poeta, filósofo e performer chinês. Mestre em Filosofia pela USP. Desenvolve em parceria com o artista brasileiro Irael Luziano um conjunto de trabalhos na linguagem da escultura, performance, vídeo e poesia. Publicou seu livro de poesia Naufrágios (Ed. Multifoco) e, em breve, publicará o livro Metacorporeidade e seu ensaio “Por uma estética da diferença: um diálogo entre Deleuze e Artaud” no livro Deleuze Hoje (Editora Unifesp) com ensaios da filósofa Marilena Chauí e de outros pesquisadores. Mantém um site: http://philomundus.blogspot. com e pode ser encontado em: winnerchiu@gmail.com
–
Vale a pena ler primeiro é seção de Outras Palavras dedicada à literatura. Foi criada e é editada por Fabiano Alcântara. Jornalista especializado em cultura, repórter de Música do portal Virgula, e colaborador de diversas publicações – como Valor Econômico e os sites das revistas TRIP e TPM –, Fabiano é também músico, baixista das bandas Mercado de Peixe e Lavoura e curador de festivais.Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário