domingo, 1 de setembro de 2013

A obsessão com a saúde perfeita

A obsessão com a saúde perfeita
Um fator patogênico predominante

A obsessão com a saúde perfeita | Tradução: Roberto Passos Nogueira, ex-presidente do Cebes

Ivan Illich, março de 1999

Nos países desenvolvidos, a obsessão com a saúde perfeita tornou-se um fator patogênico predominante. O sistema de saúde, num mundo repleto do ideal instrumental da ciência, cria constantemente novas necessidades de cuidado. Contudo, quanto maior for a oferta de cuidados de saúde, mais as pessoas dizem que têm problemas, necessidades, doenças. Cada um requer que o progresso ponha fim aos sofrimentos do corpo, mantenha o maior tempo possível o frescor da juventude e prolongue a vida indefinidamente. Nem velhice, nem dor, nem morte. Esquece-se assim que tal desgosto pela arte do sofrimento é a própria negação da condição humana.

Quando se considera a medicina historicamente, ou seja, a medicina no mundo ocidental, inevitavelmente, há de se ter em conta a cidade de Bolonha, Itália. Foi nesta cidade que a ars medendi et curandi foi separada, como disciplina, da teologia, da filosofia e do direito. Este é o lugar onde, ao selecionar uma pequena parte dos escritos de Galeno (1), o corpo doutrinário da medicina estabeleceu sua soberania sobre um território distinto daquele de Aristóteles ou de Cícero. Foi em Bolonha que, no campo do saber, foi restabelecida a disciplina cujo tema é a dor, a angústia e a morte, e onde foi ultrapassada essa fragmentação, nunca perpetrada no mundo islâmico, onde o título de Hakim significa, ao mesmo tempo,  o cientista, o filósofo e o curador.

Bolonha, dando autonomia universitária ao conhecimento médico e, além disso, estabelecendo uma autocrítica de sua prática através da criação do Protomedicado, lançou as bases para um empreendimento social eminentemente ambíguo, uma instituição que progressivamente veio a se esquecer dos limites dentro dos quais lhe convém mais que nada lidar com o sofrimento, em vez de eliminá-lo, e acolher a morte, em vez de repeli-la a qualquer custo.

Por certo, a tentação de Prometeu (2) se apresentou desde cedo à medicina. Mesmo antes da fundação, em 1119, da Universidade de Bolonha, os médicos judeus da África do Norte contestavam a resignação própria dos médicos árabes na hora fatal. E foi necessário muito tempo para que essa regra desaparecesse: mesmo em 1911, quando da profunda reforma das escolas médicas norte-americanas, ainda se ensinava a reconhecer a "face hipocrática”, ou seja, os sinais que evidenciam ao médico que ele não se encontra mais diante de um paciente, mas de um moribundo.

Esse realismo pertence ao passado. No entanto, em vista do acúmulo de mortos que continuam vivos graças aos cuidados e em vista de seu suplício modernizado, está na hora de desistir de todo tipo de cura da velhice. Por essa iniciativa, poder-se-ia preparar o retorno ao realismo que subordina a técnica à arte de sofrer e de morrer. Poderíamos fazer soar o alarme de que a arte de celebrar o presente está paralisada por aquilo que se tornou a busca da saúde perfeita.

Do corpo físico ao corpo fiscal

Para falar dessa “metáfora da saúde", devem ser aceitos dois pontos. Não é apenas o conceito de saúde que é histórico, mas também a metáfora. O primeiro ponto é óbvio. 

O ensaísta Northrop Frye (3) me fez entender o segundo: a metáfora tem um significado muito diferente em grego, no qual evoca a deusa Hygeia (4), e para o cristão primitivo, para quem evoca a deusa Hygia, ou para o cristão medieval, para quem ela convida à salvação por um único Criador e Salvador crucificado. Mas ainda mais diferente é essa metáfora quando se refere à criação de necessidades de cuidados num mundo impregnado pelo ideal instrumental da ciência. Na medida em que aceitamos tal historicidade da metáfora, vale a pena perguntar se, nos últimos anos do milênio, ainda é legítimo falar de uma metáfora social.

E aqui está a minha tese: em meados do século XX, aquilo em que implica a noção de uma "busca da saúde" tinha um significado diferente do de hoje. De acordo com a noção de que se afirma hoje, o ser humano que precisa de cuidados é considerado com um subsistema da biosfera, um sistema imunológico, que é preciso controlar, regular, otimizar, como "uma vida". Não é mais uma questão de destacar o que é a experiência de "estar vivendo". Por sua redução a uma mera vida, o assunto cai num vazio que sufoca. Para falar de saúde, em 1999, deve-se compreender a busca da saúde como o inverso daquilo que é a salvação, ela deve ser entendida como uma liturgia societária a serviço de um ídolo que extinguiu a pessoa.

Em 1974, eu escrevi Nêmesis da Medicina (5). No entanto, eu não escolhi a medicina como um tema, mas como um exemplo. Com este livro, eu queria dar continuidade a um discurso já iniciado acerca das instituições modernas enquanto cerimônias criadoras de mitos, de liturgias que celebram certezas sociais. Assim, eu me voltei para a escola (6), o transporte e a habitação, a fim de compreender as suas funções latentes e inevitáveis, o que proclamam, mais do que o que produzem: o mito do Homo Educandus, o mito do Homo Transportandus, finalmente, o do homem “encaixado” (encastré).

Eu escolhi a medicina como um exemplo para ilustrar os diferentes níveis de contraprodutividade característico de todas as instituições do pós-guerra, o seu paradoxo técnico, social e cultural: no plano técnico, a sinergia terapêutica que produz novas doenças; no plano social, o desenraizamento operado pelo diagnóstico que assombra o doente, o louco e o velho, e aquele que morre lentamente. E, sobretudo, no plano cultural, a promessa de progresso que levou à recusa da condição humana e ao desprezo pela arte do sofrimento.

Comecei a Nêmesis da Medicina com estas palavras: "A medicina institucionalizada ameaça a saúde”. Na época, esta declaração poderia lançar dúvidas sobre a seriedade do autor, mas também tinha o poder de causar choque e raiva. Vinte e cinco anos mais tarde, eu não poderia mais colocar essa frase sob minha conta, por duas razões. Os médicos perderam o leme da condição biológica, o comando da biocracia. Se há sempre um praticante da medicina entre os "decisores", ele está lá apenas para legitimar a pretensão do sistema industrial de melhorar a saúde. E, além disso, essa "saúde" não faz mais falta em sentido pessoal. É uma "saúde" paradoxal. "Saúde" designa um ótimo cibernético. A saúde é concebida como um equilíbrio entre o macrossistema sócio- ecológico e a população humana como um dos seus subsistemas. Ao submeter-se à otimização, a pessoa se anula.

Hoje, gostaria de começar minha argumentação, dizendo: "a busca da saúde tornou-se o fator patogênico predominante". Aqui me vejo obrigado a lidar com uma contra produtividade sobre a qual eu não podia pensar quando escrevi a Nêmesis.

Tal paradoxo torna-se óbvio quando se coletam os informes sobre os progressos da área da saúde. Eles devem ser lidos como um Janus de duas faces (7): do lado direito, vemo-nos tocados pelas estatísticas de mortalidade e morbidade, onde a diminuição é interpretada como o resultado das intervenções médicas; do lado esquerdo, não se pode evitar a maioria dos estudos antropológicos que nos dão as respostas para a pergunta: como você está?

Não podemos mais deixar de ver o contraste entre a saúde supostamente objetiva e subjetiva. E o que se observa? Quanto maior é a oferta de "saúde", mais as pessoas dizem que têm problemas, necessidades, doenças, e precisam ser protegidos contra o risco, ao passo que nas regiões supostamente analfabetas, os “subdesenvolvidos” não veem nenhum problema em aceitar sua condição. Sua resposta para a pergunta "como você está?" é a seguinte: "Estou bem, considerando minha condição, minha idade, meu carma”. E mais ainda: quanto mais a pletora clínica resulta do engajamento político da população, mais intensamente se sente a falta de saúde. Em outras palavras, a ansiedade mede o nível de modernização e mais ainda aquele da politização. A aceitação social do diagnóstico "objetivo" tornou-se patogênico no sentido subjetivo.

E são precisamente os economistas partidários de uma economia orientada pelos valores da solidariedade que fazem do direito de todos à saúde um objetivo primordial. Logicamente, eles são forçados a aceitar limites econômicos para todos os tipos de cuidados pessoais. É entre eles que se encontra uma interpretação ética da redefinição do patológico que opera no interior da medicina. A redefinição atual da doença faz com que haja, segundo o professor Samuel Sajay da Universidade Bucknell, "a transição do corpo físico para um corpo fiscal." De fato, os critérios selecionados para classificar os casos individuais como necessitados de cuidados médicos são, em número crescente, parâmetros financeiros.

A ausculta substitui a escuta

A partir de uma perspectiva histórica, o diagnóstico foi durante séculos uma função altamente terapêutica. A maior parte do encontro entre o médico e o paciente era verbal. Mesmo no início do século XVIII, a visita médica era uma conversação. O paciente falava, esperando ouvir algo especial do por parte do médico. Ainda sabia falar sobre o que sentia: um desequilíbrio de seus humores, uma alteração de seus fluxos, uma desorientação dos seus sentidos e sobre as coagulações aterrorizantes. 

Quando eu li as anotações de tal ou qual médico Barroco (séculos XVI e XVII), cada frase evocava uma tragédia grega. A arte médica consistia em ouvir. Assumia o comportamento que Aristóteles, em sua Poética, exigia do público no teatro, diferindo neste aspecto de seu mestre Platão. Aristóteles é trágico por suas inflexões vocais, sua melodia, seus gestos, não apenas pelas palavras. É assim que o médico respondia ao paciente mimeticamente. Para o paciente, este diagnóstico mimético tinha uma função terapêutica.

Essa ressonância desaparece em seguida, a auscultação substitui a escuta. A ordem dada cede lugar à ordem construída, e não só na medicina. A ética dos valores substitui aquela do bem e do mal, a segurança do saber desclassifica a verdade. Para a música, a consonância ouvida, que poderia revelar a harmonia cósmica, desapareceu sob a influência da ciência acústica, que ensina a como fazer sentir as curvas sinusoidais no meio.

Esta transformação do médico que escuta uma queixa a um médico que identifica uma doença atinge o seu pico depois de 1945. Isso leva o paciente a olhar a si mesmo através do crivo médico, para passar por uma autópsia no sentido literal da palavra: para ver com seus próprios olhos. Mediante esta visualização de si, ele renuncia a sentir-se a si mesmo. Os Raios-X, a ultrassonografia e mesmo a ecografia dos anos 70 ajudavam a pessoa se identificar com os desenhos anatômicos de sua infância, afixados nas paredes da sala de aula. A consulta médica põe-se a serviço da desencarnação do ego.

Seria impossível, para realizar a análise da saúde e da doença enquanto metáforas sociais, ao nos aproximarmos do ano de 2000, não compreender que esse imaginário de auto-abstração pelo ritual médico pertence ao passado, igualmente. O diagnóstico não dá mais uma imagem de algo que é realista, mas um emaranhado de curvas de probabilidades organizado segundo um perfil.

O diagnóstico não mais se destina ao sentido da visão. Agora, requer que o paciente faça um cálculo frio. A maioria dos elementos da medida de diagnóstico não medem mais este indivíduo concreto; cada observação coloca seu caso em uma "população" diferente e indica um risco, sem ser capaz de identificar o sujeito. O médico é colocado fora da escolha do bem para um paciente específico. Para decidir quais os serviços que deverá prestar, ele obriga o paciente a jogar seu destino no pôquer.

Tomo como exemplo o aconselhamento genético pré-natal estudado a fundo por um colega, pesquisador Silja Samerski da Universidade de Tübingen. Eu não teria acreditado no que passa de acordo com o estudo de dezenas de protocolos nessas consultas a que as mulheres estão sujeitas na Alemanha. Estas consultas são feitas por um médico submetido a quatro anos de especialização em genética. Ele se abstém rigorosamente de emitir qualquer opinião para evitar o destino de um médico de Tübingen, condenado em 1997 pelo Supremo Tribunal Federal, para sustentar por toda a vida a manutenção de uma criança malformada, porque ele havia sugerido para a mãe que a probabilidade de tal anormalidade não era grande, em vez de se limitar a fornecer um fator numérico de risco.

Nessas entrevistas, são repassadas desde as informações sobre a fertilização e um resumo das leis de Mendel (8), até ao estabelecimento de uma árvore genético-heráldica para chegar ao inventário dos riscos e uma caminhada através de um jardim de "monstruosidades". Sempre que a mulher pergunta se isso poderia acontecer com ela, o médico responde: "Senhora, com certeza não podemos excluí-lo". Mas, com certeza, tal resposta deixa seus vestígios. A cerimônia tem um efeito simbólico inevitável: ela força a mulher grávida a tomar a "decisão", identificando a si mesma e seu filho por nascer a uma configuração de probabilidades.

Não é a decisão a favor ou contra a continuação da gravidez de que eu falo, mas acerca da obrigação de a mulher se identificar a si mesma, e também a seu rebento, com uma "probabilidade". Identificar sua escolha com um bilhete de loteria. É, assim, forçada a um oxímoro (9) de decisão que é fazer uma escolha que pretende ser humana, mas que se encaixa na desumanidade do número. Estamos diante não de uma desencarnação do ego, mas da negação da unidade do sujeito, o absurdo de se arriscar como um sistema, como um modelo atuarial. O médico se torna um psicopombo (10), em uma liturgia de iniciação à ciência da estatística. E tudo isso para "a busca da saúde".

Neste ponto, torna-se impossível tratar a saúde como uma metáfora. Metáforas são como um trajeto de um rio semântico a outro. Por natureza, elas são mancas. Mas, em essência, elas lançam luz sobre o ponto de partida da travessia. Isto pode não ser o caso quando a saúde é concebida como a otimização de um risco. O abismo entre o somático e o matemático não mais o admite. O ponto de partida não tolera nem a carne nem o ego. A busca da saúde dissolve a ambos. Como podemos ainda dar corpo ao horror quando se está privado de carne e de osso? Como evitar se deixar levar à deriva de decisões suicidas? Façamos uma oração: "Não nos deixai cair no diagnóstico, mas livrai-nos dos males da saúde".

IVAN ILLICH

Un Facteur Pathogène Prédominant, L’obsession de la santé parfaite, par Ivan Illich, Le Monde Diplomatique, mars 1999. Tradução de Roberto Passos Nogueira (2013)
 
Referências

(1) Médico grego (131-201), que exerceu a profissão especialmente em Pérgamo e Roma. Suas dissecações de animais permitiram-lhe fazer descobertas anatômicas 
importantes sobre o sistema nervoso e o coração. Sua influência foi considerável, até o século XVII.
(2) Herói da antiguidade que se diz ter ensinado o homem tudo o que fundou a civilização. Ele roubou o fogo aos deuses para doar aos homens.
(3) Northrop Frye (1912-1990), ex-professor da Universidade de Toronto e um dos críticos literários mais influentes em Inglês.
(4) Personificação da saúde, filha de Esculápio, o deus grego da medicina.
(5) Leia Ivan Illich, A Expropriação da Saúde: Nêmesis da Medicina, Nova Fronteira, 1975
(6) Leia Ivan Illich, Sociedade sem escolas, Vozes, 1977.
(7) A duas faces do deus romano Janus; janeiro (januarius) é dedicado a ele.
(8) Řehoř, dito, Gregor Mendel (1822-1884), botânico tcheco, fundador da genética, que descobriu as leis da hibridação.
(9) Como uma metáfora, oxímoro é uma figura de linguagem. É um nome aplicado a um epíteto que parece contraditório, por exemplo: claridade escura, sol preto, força tranquila.

(10) Condutor das almas dos mortos, como Hermes e Orfeu.

Nenhum comentário:

Postar um comentário