Filme de jovem diretor português resgata reflexão sobre eurocentrismo, em meio a humor refinado e inovações formais relevantes
Por José Gerado Couto*, do blog IMS
Tabu, do português Miguel Gomes, é desde já um dos filmes do ano, por sua originalidade desconcertante, seu frescor, sua rara combinação de liberdade de imaginação e rigor de linguagem. Não foi à toa que essa coprodução luso-franco-germano-brasileira ganhou o prêmio da crítica internacional no festival de Berlim do ano passado.
Rodado num discreto preto e branco de baixo contraste e grande profundidade de campo, que dá a ver todos os matizes do cinza, o filme se divide em duas partes bem distintas. Na primeira, na Lisboa atual, Pilar (Teresa Madruga), uma solitária militante católica dos direitos humanos, tenta salvar do desastre sua vizinha Aurora (Laura Soveral), uma velhota amalucada viciada em jogo e em remédios, sempre às turras com a empregada cabo-verdiana (Isabel Cardoso). A atmosfera, o entrecho e os personagens um tanto insólitos lembram alguns melodramas irônicos de Almodóvar, como A flor do meu segredo ou Abraços partidos.
Na segunda parte, ambientada em algum lugar da África profunda, ao pé de um certo Monte Tabu, conta-se a história pregressa de Aurora, filha de um rico plantador de chá numa colônia lusitana no continente. Essa segunda metade é contada retrospectivamente em off por Gian Luca Ventura (Henrique Espírito Santo/Carloto Cotta), velho amigo e amante de Aurora (encarnada na juventude por Ana Moreira).
África de cinema
O artifício da narração indireta, tingida pela memória afetiva, permite a Miguel Gomes criar uma África “de cinema”, em que se misturam mitos aventureiros românticos e ecos da dominação colonial europeia. Um triângulo amoroso trágico se desenrola sobre um pano de fundo de crocodilos, safáris, nativos servis, frutas tropicais, crenças fetichistas e a obscura ameaça de revoltas tribais.
O distanciamento irônico do diretor se exerce de diversas maneiras: no tom sereno da rememoração de Ventura, no fato de os jovens protagonistas do drama africano serem playboys que andam de moto e montam um grupo de rock romântico no meio da selva, mas principalmente por um engenhoso dispositivo formal. Nas cenas relembradas não se ouvem os diálogos, o que implica um certo clima de cinema mudo, mas apenas alguns ruídos, selecionados cuidadosamente: passos no matagal, trinados de um ou outro pássaro, o ronco de um motor, batuques nativos.
A inusitada textura assim criada nos remete a um terreno entre o real e o imaginário. Uma poética, em suma, especificamente cinematográfica, impossível de ser expressa em qualquer outra linguagem. Ao mesmo tempo, o conjunto de referências estimula a reflexão sobre toda a ideia que temos da África, alimentada por informações históricas, documentários etnográficos, filmes de aventura, gibis, canções etc.
Cenografia inusitada
A mise-en-scène de Gomes nunca é banal, mesmo no registro mais direto da primeira parte. Sua objetividade narrativa é admirável. Um exemplo entre muitos: Pilar vai a um asilo fora da cidade buscar Ventura, a pedido da hospitalizada Aurora. No caminho de volta a Lisboa, atende o celular e ouve uma notícia em silêncio. Corta para um carro fúnebre. Nada precisou ser dito ao espectador.
Os achados cenográficos são muitos. Num shopping center lisboeta, uma falsa mata tropical, com tucano e tudo, antecipa a ambientação africana que virá em seguida. Já na África, um macaco arranca da parede os mapas pouco científicos do continente que o personagem Mario (Manuel Mesquita) desenha, entre um ensaio e outro da sua Mario’s Band. A banda propriamente dita pontua ironicamente a tragédia dos protagonistas. Numa cena, toca Be my baby em espanhol numa festa decadente à beira de uma piscina; em outra, seus músicos posam trepados em uma árvore para a foto da capa de um disco.
O elenco, afiadíssimo, inclui o brasileiro Ivo Müller, no papel do marido traído de Aurora. A veterana Laura Soveral, extraordinária no papel da velha Aurora, atuou em diversos filmes de Manoel de Oliveira e no brasileiro O judeu, de Jom Tob Azulay.
Tabu é apenas o terceiro longa-metragem de Miguel Gomes. A julgar por ele e pelos dois anteriores, A cara que mereces e Aquele querido mês de agosto – todos exibidos na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado –, cabe esperar com ansiedade pelos novos trabalhos desse diretor de 40 anos.
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