O filme ‘César deve morrer’ (2012), dirigido por Paolo Taviani e Vittorio Taviani, baseia-se na peça de ‘Júlio César’ (1623), de Shakespeare. Entretanto, não se passa no Senado de Roma, mas sim em Rebibbia, uma prisão de segurança máxima na periferia da capital italiana. Com isso, os diretores eternizam o debate sobre a força da subordinação diante das tentativas de questionamento das estruturas de poder. Por Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler
‘César deve morrer’ (2012), filme dirigido por Paolo Taviani e Vittorio Taviani, tem o título da conspiração que assassinou o generalíssimo romano. Dessa vez, no entanto, o palco da peça de William Shakespeare, ‘Júlio César’ (1623), não será o Senado de Roma, mas Rebibbia, uma prisão de segurança máxima na periferia da capital italiana. Os detentos fazem as vezes dos atores; suas histórias de vida muitas vezes se fundem às estórias dos executores de César.
A obra se estrutura como uma mescla de documentário e ficção, uma vez que o mote para a encenação da peça vem da direção da penitenciária. Os diretores do filme, por sua vez, apresentam as cenas como recortes das reverberações que Shakespeare vai legando nas formas pelas quais os mais novos atores passam a perceber o mundo (vigiado) a seu redor.
Se os espectadores começamos a assistir ao filme a partir do fim da peça, em que o assassino Bruto pretende se suicidar diante da derrota iminente por conta do avanço das tropas dos vingadores de César, Otávio e Marco Antônio, logo retrocedemos no tempo e nos deparamos com a seleção dos detentos que serão metamorfoseados em atores. Alguns cumprem penas por participação no crime organizado – a Camorra é mencionada; outros já não sabem mais o que é a vida sem lhe acrescentar a lápide “perpétua”. Assim, uma pergunta ressoa para aqueles que nos sentimos mais livres diante da onipresença do poder: qual seria a motivação dos detentos perpétuos para atuar na peça? Ou pior: qual seria a motivação deles para continuar a viver?
Enquanto esteve preso na Sibéria por ter participado do Círculo de Petrachévski, um grupo revolucionário que se contrapôs ao regime tsarista, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) pôde presenciar – e vivenciar – um fenômeno no mínimo inusitado. Alguns detentos eram agrupados em um extremo do pátio da prisão. Ao comando do oficial encarregado, tinham que encher um carrinho de mão com areia e, quando ouvissem o apito, deviam levar a carga para o outro lado do pátio. Um novo apito ordenava o esvaziamento do carrinho que, logo em seguida, precisava ficar cheio de areia novamente para que seguisse o trajeto de volta ao ponto inicial, isto é, de volta ao extremo do pátio do qual o grupo havia partido. Tais idas e vindas eram repetidas à exaustão, de modo que o vaivém inútil da areia não possibilitasse aos detentos qualquer percepção de uma possível finalidade para a ampulheta humana em questão. Em meio à observação participante, Dostoiévski pôde perceber que os presos começavam a apresentar sinais de inquietação que beiravam ataques de pânico e surtos. Se o homem não perceber uma finalidade em sua existência desde as questões últimas até os alicerces de seu cotidiano, a vida tende a se reduzir ao trajeto tautológico do carrinho de areia. O homem prefere a insanidade de um trabalho coercitivo à continuidade de uma existência que não lhe dá sequer a chance de uma resposta para a pergunta: para que estou aqui? Não à toa, as impressões de Dostoiévski sobre o degredo siberiano formaram as ‘Recordações da Casa dos Mortos’ (1862).
Se compararmos a crueldade dos oficiais siberianos com a benevolência das autoridades italianas de Rebibbia, benevolência que permitiu aos detentos a encenação de Shakespeare, estaremos diante de um avanço decisivo dos direitos humanos. Mas que dizer de uma sentença como a prisão perpétua? Diante de um futuro que não mais fará amor com a esposa e nem beijará a filha senão com a mediação de grades, cercas de arame farpado e cães, como é que a vida não se confunde com o vaivém inútil de um carrinho de mão repleto de areia? Como é que o cotidiano de um detento perpétuo pode escapar da sensação de ser esmagado pela ampulheta humana? Quando o diretor da peça pede que os detentos sejam céleres para que “não percamos mais tempo”, um dos atores, quiçá inspirado pela sabedoria de Shakespeare, só faz sentenciar:
− Ora, “não percamos mais tempo”, meu caro? Faz 20 anos que eu respiro sob os punhos desses muros, e você quer que “não percamos mais tempo”?
Se a sociedade estivesse voltada não para a perpetuidade das punições, mas para a amplitude das oportunidades, os detentos – que, provavelmente, teriam menos chances de viver em celas – encenariam ‘Júlio César’ não em Rebibbia, mas no Coliseu romano. Será que, assim, o espectro autoritário de César seria expurgado da história humana? Eis a pergunta a reboque da utopia que os detentos passam a fazer:
− Quem mais terminará assassinado como César?
Ao que o detento que incorpora intensamente a personagem de Bruto replica:
− A justiça não é um matadouro. Nós somos os executores da justiça.
Não podemos deixar de notar a ambiguidade shakespeareana da máxima de Bruto: por um lado, a justiça não deve fazer coro à Lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Os conspiradores não apenas mataram César; eles pensam ter assassinado o tirano, ou melhor, o ímpeto da tirania. Por isso, “somos os executores da justiça”: executamos os desígnios da justiça e também executamos a própria justiça, a exterminamos. Para o (suposto) bem republicano de Roma, matamos César, fizemos justiça com nossas próprias mãos.
Quando se tenta matar a planária cortando-a ao meio – a planária, um platelminto com o qual só temos contato nas longínquas aulas de Biologia do ensino médio –, cada metade se regenera e dá à luz uma nova planária. Matar César não extirpa da história a tirania, assim como a guilhotina não decapitou o ímpeto servil da massa junto com a cabeça de Luís XVI. Diante do cadáver de César, duas vozes contraditórias discursarão para a plebe romana. Primeiro Bruto, depois Marco Antônio.
Bruto, o conspirador, condena a ambição tirânica de César. A massa faz coro ao assassino do general e, se pudesse, faria César ressuscitar para matá-lo ainda uma vez.
Marco Antônio, aliado de César, lê para a massa o testamento que o generalíssimo romano legara para a plebe. Dinheiro para o povo! “César, volte à vida! Viva!”
Ao apostar na emancipação dos povos, a utopia pressupõe a consciência das massas, seu princípio de autodeterminação. Shakespeare ensina aos detentos e aos espectadores em liberdade (assistida) que a subordinação sobrevive às mais variadas tentativas de questionamento das estruturas de poder. Quiçá o homem de fato busque alguém diante de quem se inclinar – é por isso que Bruto grita a plenos pulmões que “César deve morrer!” Mas o ímpeto pelo poder, movimento que a história foi forjando e transformando em uma estrutura impessoal e legada de geração em geração, não será extirpado apenas com a morte de um dos seus representantes. Se o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) estiver certo ao dizer que não há vácuo no poder, o assassinato de Júlio César só faz prenunciar a coroação de Luís XIV, o Rei Sol. Assim, o ator que encena Cássio, um dos aliados de Bruto, só faz perguntar já extremamente tocado pela peça:
− Será que Shakespeare viveu na minha Nápoles? Tudo o que ele diz sobre Roma eu vi e vivi por lá. Apenas não posso dizer como César: “vim, vi e venci”. Mas será que César pode repetir sua frase vitoriosa? Quantas vezes sua morte será reencenada? Quantas vezes César deverá sangrar no palco?
A arte ludibria a realidade ao fazer perguntas que o poder simplesmente não pode suportar. O detento Cássio sentencia: “Desde que conheci a arte, esta cela tornou-se uma prisão”. Eis que a encenação fílmica de Shakespeare assume uma faceta libertária – e cínica: a nova amplitude que a arte lhe traz terá que colidir para sempre contra as paredes da prisão perpétua. Desde que Cássio conheceu a prisão, a arte tornou-se um palco – e uma cela. Tais contradições retratadas por ‘César deve morrer’ nos fazem entrever por que Júlio César ainda vive.
*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, ‘O Evangelho segundo Talião’ (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o ‘Subsolo das Memórias’, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
Se os espectadores começamos a assistir ao filme a partir do fim da peça, em que o assassino Bruto pretende se suicidar diante da derrota iminente por conta do avanço das tropas dos vingadores de César, Otávio e Marco Antônio, logo retrocedemos no tempo e nos deparamos com a seleção dos detentos que serão metamorfoseados em atores. Alguns cumprem penas por participação no crime organizado – a Camorra é mencionada; outros já não sabem mais o que é a vida sem lhe acrescentar a lápide “perpétua”. Assim, uma pergunta ressoa para aqueles que nos sentimos mais livres diante da onipresença do poder: qual seria a motivação dos detentos perpétuos para atuar na peça? Ou pior: qual seria a motivação deles para continuar a viver?
Enquanto esteve preso na Sibéria por ter participado do Círculo de Petrachévski, um grupo revolucionário que se contrapôs ao regime tsarista, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) pôde presenciar – e vivenciar – um fenômeno no mínimo inusitado. Alguns detentos eram agrupados em um extremo do pátio da prisão. Ao comando do oficial encarregado, tinham que encher um carrinho de mão com areia e, quando ouvissem o apito, deviam levar a carga para o outro lado do pátio. Um novo apito ordenava o esvaziamento do carrinho que, logo em seguida, precisava ficar cheio de areia novamente para que seguisse o trajeto de volta ao ponto inicial, isto é, de volta ao extremo do pátio do qual o grupo havia partido. Tais idas e vindas eram repetidas à exaustão, de modo que o vaivém inútil da areia não possibilitasse aos detentos qualquer percepção de uma possível finalidade para a ampulheta humana em questão. Em meio à observação participante, Dostoiévski pôde perceber que os presos começavam a apresentar sinais de inquietação que beiravam ataques de pânico e surtos. Se o homem não perceber uma finalidade em sua existência desde as questões últimas até os alicerces de seu cotidiano, a vida tende a se reduzir ao trajeto tautológico do carrinho de areia. O homem prefere a insanidade de um trabalho coercitivo à continuidade de uma existência que não lhe dá sequer a chance de uma resposta para a pergunta: para que estou aqui? Não à toa, as impressões de Dostoiévski sobre o degredo siberiano formaram as ‘Recordações da Casa dos Mortos’ (1862).
Se compararmos a crueldade dos oficiais siberianos com a benevolência das autoridades italianas de Rebibbia, benevolência que permitiu aos detentos a encenação de Shakespeare, estaremos diante de um avanço decisivo dos direitos humanos. Mas que dizer de uma sentença como a prisão perpétua? Diante de um futuro que não mais fará amor com a esposa e nem beijará a filha senão com a mediação de grades, cercas de arame farpado e cães, como é que a vida não se confunde com o vaivém inútil de um carrinho de mão repleto de areia? Como é que o cotidiano de um detento perpétuo pode escapar da sensação de ser esmagado pela ampulheta humana? Quando o diretor da peça pede que os detentos sejam céleres para que “não percamos mais tempo”, um dos atores, quiçá inspirado pela sabedoria de Shakespeare, só faz sentenciar:
− Ora, “não percamos mais tempo”, meu caro? Faz 20 anos que eu respiro sob os punhos desses muros, e você quer que “não percamos mais tempo”?
Se a sociedade estivesse voltada não para a perpetuidade das punições, mas para a amplitude das oportunidades, os detentos – que, provavelmente, teriam menos chances de viver em celas – encenariam ‘Júlio César’ não em Rebibbia, mas no Coliseu romano. Será que, assim, o espectro autoritário de César seria expurgado da história humana? Eis a pergunta a reboque da utopia que os detentos passam a fazer:
− Quem mais terminará assassinado como César?
Ao que o detento que incorpora intensamente a personagem de Bruto replica:
− A justiça não é um matadouro. Nós somos os executores da justiça.
Não podemos deixar de notar a ambiguidade shakespeareana da máxima de Bruto: por um lado, a justiça não deve fazer coro à Lei de Talião – olho por olho, dente por dente. Os conspiradores não apenas mataram César; eles pensam ter assassinado o tirano, ou melhor, o ímpeto da tirania. Por isso, “somos os executores da justiça”: executamos os desígnios da justiça e também executamos a própria justiça, a exterminamos. Para o (suposto) bem republicano de Roma, matamos César, fizemos justiça com nossas próprias mãos.
Quando se tenta matar a planária cortando-a ao meio – a planária, um platelminto com o qual só temos contato nas longínquas aulas de Biologia do ensino médio –, cada metade se regenera e dá à luz uma nova planária. Matar César não extirpa da história a tirania, assim como a guilhotina não decapitou o ímpeto servil da massa junto com a cabeça de Luís XVI. Diante do cadáver de César, duas vozes contraditórias discursarão para a plebe romana. Primeiro Bruto, depois Marco Antônio.
Bruto, o conspirador, condena a ambição tirânica de César. A massa faz coro ao assassino do general e, se pudesse, faria César ressuscitar para matá-lo ainda uma vez.
Marco Antônio, aliado de César, lê para a massa o testamento que o generalíssimo romano legara para a plebe. Dinheiro para o povo! “César, volte à vida! Viva!”
Ao apostar na emancipação dos povos, a utopia pressupõe a consciência das massas, seu princípio de autodeterminação. Shakespeare ensina aos detentos e aos espectadores em liberdade (assistida) que a subordinação sobrevive às mais variadas tentativas de questionamento das estruturas de poder. Quiçá o homem de fato busque alguém diante de quem se inclinar – é por isso que Bruto grita a plenos pulmões que “César deve morrer!” Mas o ímpeto pelo poder, movimento que a história foi forjando e transformando em uma estrutura impessoal e legada de geração em geração, não será extirpado apenas com a morte de um dos seus representantes. Se o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) estiver certo ao dizer que não há vácuo no poder, o assassinato de Júlio César só faz prenunciar a coroação de Luís XIV, o Rei Sol. Assim, o ator que encena Cássio, um dos aliados de Bruto, só faz perguntar já extremamente tocado pela peça:
− Será que Shakespeare viveu na minha Nápoles? Tudo o que ele diz sobre Roma eu vi e vivi por lá. Apenas não posso dizer como César: “vim, vi e venci”. Mas será que César pode repetir sua frase vitoriosa? Quantas vezes sua morte será reencenada? Quantas vezes César deverá sangrar no palco?
A arte ludibria a realidade ao fazer perguntas que o poder simplesmente não pode suportar. O detento Cássio sentencia: “Desde que conheci a arte, esta cela tornou-se uma prisão”. Eis que a encenação fílmica de Shakespeare assume uma faceta libertária – e cínica: a nova amplitude que a arte lhe traz terá que colidir para sempre contra as paredes da prisão perpétua. Desde que Cássio conheceu a prisão, a arte tornou-se um palco – e uma cela. Tais contradições retratadas por ‘César deve morrer’ nos fazem entrever por que Júlio César ainda vive.
*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, ‘O Evangelho segundo Talião’ (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o ‘Subsolo das Memórias’, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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