“O saber médico se aproxima de uma forma de “religião” ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso", constata o médico, professor e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz.
“Embora o fenômeno da medicalização seja visto como a ingerência da medicina noutros campos do saber e, sobretudo, em questões essencialmente sociais, não é raro também ser relacionado à elevada dependência dos indivíduos e da sociedade da oferta de serviços e bens de ordem médico-farmacêutica e seu consumo cada vez mais intensivo. Pode-se dizer que a medicalização, hoje, envolve mais atores, instituições, empresas, interesses e práticas tanto curativas como preventivas, e reflete as transformações relativas aos modos como fenômenos de saúde, doença e risco têm sido produzidos, definidos, classificados, administrados e vividos”. A definição é do professor e médico Luis David Castiel, em entrevista concedida por e-mail para a
IHU On-Line.
Para ele, a atual configuração social é bastante propícia para a indústria médico-cirúrgico-farmacêutico-cosmética oferecer produtos e intervenções para atender aos anseios de saúde e de boa aparência. “E, se for necessário, remediar os efeitos emocionais e estresses dos eventuais reveses na busca desgastante da felicidade na vida moderna. Em geral, esta noção de procura da felicidade (...) tende a se configurar em metas traçadas que implicam em gestão racional e responsável de ações persistentes para, quiçá, atingir um resultado que seja considerado um êxito culturalmente legitimado. Em termos bem esquemáticos: ter perseverança (e saúde) para esta jornada e, se possível, obter o merecido retorno financeiro e o correspondente reconhecimento social no competitivo âmbito neoliberal contemporâneo”.
Dessa forma, continua ele, “o saber médico se aproxima de uma forma de ‘religião’ ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso. Assim, é possível estabelecer nexos entre saúde e salvação”.
Luís David Castiel (foto)é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre em Medicina Comunitária pela University of London, doutor em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, e pós-doutor pelo Departamento de Enfermaria Comunitária, Saúde Pública y Historia de la Ciencia da Universidade de Alicante, da Espanha. É pesquisador titular do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, da Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. É professor permanente do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública e do Programa de Pós-graduação de Epidemiologia em Saúde Pública.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No âmbito da evolução mais recente do capitalismo, como podemos caracterizar “saúde” para compreendermos a lógica da sua medicalização?
Luis David Castiel – Antes de tudo, penso que vale a pena tentar definir melhor a noção de medicalização. Apesar de não constar em consagrados dicionários da língua portuguesa, o vocábulo medicalização é recorrentemente empregado na literatura científica para se referir, grosso modo, à intervenção da medicina no tratamento de questões sociais. Peter Conrad – um estudioso do tema – descreve a medicalização como “o processo pelo qual problemas não médicos se tornam definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças ou transtornos”. De outro modo, pode-se dizer que o processo de medicalização centra-se na biologização do social, o que não implica, porém, a aceitação da biologia e da sociologia como ciências mutuamente excludentes.
Trata-se de algo complexo, já que a compreensão de fenômenos, cuja multiplicidade de determinações e interfaces é tão vasta, impede, de antemão, qualquer tipo de simplificação ou de priorização de determinada ciência para sua explicação.
Por sua vez, uma importante contribuição acerca desse tema, a partir do âmbito da saúde mental, foi trazida porThomas Szasz, cujo enquadramento conceitual é mais crítico ainda que o de Conrad.
Para eles, a distinção entre prática médica e não médica é de importância crucial, pois além de influir na atenção médica, no direito e nas políticas públicas, justamente por isso, interfere na vida das pessoas.
Em termos breves, para Szasz, a “medicalização” seria uma prática ilegítima de introduzir vocabulários, conceitos e práticas médicas no terreno da vida pessoal ou social, considerando que esse processo não é apropriado. A medicalização constitui-se numa estratégia de atribuição de sentidos que modela práticas sociais, profissionais e formas de consciência e conduta.
Fora do controle racional
A pressão exercida por essa perspectiva localiza-se no fato de que uma vez que alguém é considerado doente ou seu comportamento visto como resultado de patologia, tal comportamento é encarado como estando fora do controle racional das pessoas. Tais indivíduos tornam-se agentes morais e sociais deficitários.
Assim, eles podem ser vistos como irresponsáveis em relação a seus atos, passíveis de abordagens coercitivas por aqueles que se colocam no lugar de autoridades e experts. Passam, assim, a ser objetos de práticas e estratégias institucionais e especializadas concebidas para conduzir, “aconselhar” e, se for o caso, corrigir as pessoas.
Em geral, essa insidiosa invasão da medicina é inadvertidamente aceita pelas pessoas, a ponto de passarem a regular boa parte de suas vidas de acordo com prescrições de saúde. Comportamentos “de risco” são descritos e desaconselhados (quando não proibidos) no tocante à alimentação, atividade física, ou outras atividades que possam ser caracterizadas como maus hábitos.
Embora o fenômeno da medicalização seja visto como a ingerência da medicina noutros campos do saber e, sobretudo, em questões essencialmente sociais, não é raro também ser relacionado à elevada dependência dos indivíduos e da sociedade da oferta de serviços e bens de ordem médico-farmacêutica e seu consumo cada vez mais intensivo.
Pode-se dizer que a medicalização, hoje, envolve mais atores, instituições, empresas, interesses e práticas tanto curativas como preventivas, e reflete as transformações relativas aos modos como fenômenos de saúde, doença e risco têm sido produzidos, definidos, classificados, administrados e vividos.
O fenômeno da medicalização é interpretado especialmente como estando vinculado à disseminação do uso de medicamentos como principal estratégia para o tratamento de doenças e prevenção de riscos. Segundo a lógica biomédica, os medicamentos “consertam” ou “minimizam” as falhas nas “peças” da máquina humana, fazendo com que ela volte a funcionar satisfatoriamente. Ou seja, grande parte do processo medicalizador atende aos interesses da indústria farmacêutica que atua como um ator central nesse contexto .
Racionalidade do risco
Por sua vez, a racionalidade do risco torna-se bastante adaptada para uma importante faceta medicalizadora contemporânea. São as proposições do autocuidado que veiculam o uso de recomendações epidemiologicamente justificadas e medicamente chanceladas para que pessoas leigas, de alguma forma, tornem-se pacientes e assumam comportamentos saudáveis e diretrizes médicas em nome do tratamento preventivo de agravos à saúde. Caso ainda não tenham assumido este mandato da cultura hiperpreventiva, existe, assim literalmente definida, a “terapêutica de mudança de estilos de vida”.
É sempre possível estar-se à mercê de vários riscos à integridade física e mental, mesmo sem sintomas evidentes. Nestas circunstâncias, temos cada vez mais indivíduos em um estatuto ambíguo: simultaneamente não saudáveis e não doentes. Um exemplo: mais pessoas são diagnosticadas com pré-doenças, como pré-hipertensão e pré-diabetes. Nestas situações, o tratamento médico para ambas as doenças pode ser praticamente equivalente. Claro que a elevação do número de indivíduos sob tratamento se ajusta aos interesses de ampliação de mercados para novas drogas preventivas e outras intervenções.
Uma “nova consciência de saúde”
O início da trajetória deste estado de coisas pode ser, de alguma forma, situado no começo dos anos 1970. Há autores que identificam neste período, nos Estados Unidos, um momento em que a saúde passa a ser vista como algo em relação a qual as pessoas deviam estar devidamente informadas para, em nome da liberdade de escolha e do direito de decidir autonomamente, tomarem as medidas supostamente mais acertadas. Neste quadro, a mudança de comportamento deslocou-se para o centro da experiência das classes médias. Como se houvesse a produção de uma “nova consciência de saúde” para indicar uma formação ideológica emergente que definia questões de saúde e suas soluções dentro dos limites do controle pessoal.
A dimensão da responsabilidade pessoal se desenvolveu em meio a práticas culturais com as quais essas classes médias há muito se identificavam. Constituía-se como uma espécie de referência moral central para as pessoas passarem a crer que a operação na esfera de si mesmo, através de um trabalho no próprio corpo, proporcionaria efeitos benéficos para a saúde.
As consequências ideológicas da redefinição do problema da saúde ligada ao estilo de vida e a solução para a responsabilidade individual é relevante. A nova consciência de saúde se tornou um modelo no qual a responsabilidade individual (ou sua falta) deveria também reproduzir a responsabilidade individual pelo bem estar econômico. Não é à toa que ambas operam com a categoria “risco”.
Contribuição para a ordem social neoliberal
Olhando retrospectivamente, as práticas de saúde daquela época contribuíram para o crescimento da ordem social neoliberal. O sucesso das soluções privatizadas de mercado para problemas públicos deve ser entendido pela forma como a responsabilidade individual venceu a moralidade política baseada na responsabilidade coletiva para o bem-estar econômico e social, em meio a outros elementos, que não vêm ao caso agora.
Ainda em retrospecto, ficou claro que a responsabilidade individual pela saúde, mesmo com algumas resistências, se mostrou especialmente efetiva para determinar o “senso comum” dos princípios centrais do neoliberalismo em função de gastos sociais com saúde ao contrastarmos a imagem de indivíduos autônomos, prudentes, autorresponsáveis com visões antagônicas de descuidados, imprudentes, irresponsáveis. Os cuidadosos pagariam impostos para proporcionar atenção médica para os que adotavam estilos de vida insalubres e, por isso, adoeciam. Falar de saúde se tornou falar de responsabilidade .
E, assim, estava traçada a fórmula da saúde como um valor elevado que participa na busca pessoal de bem-estar subjetivo. Tal “bem-estar” é dependente de perspectivas individualizadas da relação das pessoas com suas identidades. Estas devem estar modeladas, em grande parte, pela aparência somática, sobre a qual a opinião de outros e os valores culturais dominantes exercem grande influência e enfatizam a importância da imagem corporal e fisionômica na vida em sociedade.
Aqui, cabe mencionar conhecidos conceitos autorreferidos (como autoestima, autoconfiança, autossatisfação, autocuidado) que participam ativamente das dinâmicas subjetivas das pessoas. E há intervenções médicas que oferecem a possibilidade de obter alterações corporais desejáveis cuja carência teria o poder de impedir que a felicidade na vida fosse alcançada.
A meta principal é manter elevado nosso estado de autossatisfação em meio a um contexto capaz de produzir níveis consideráveis de insatisfação. É preciso que estejamos constantemente alertas e atuantes em relação à nossa saúde e à imagem que temos de nós mesmos, dispostos a adotar práticas, consumir produtos e serviços para impedir o movimento “inercial” da “autoestima”, que é diminuir.
Esta configuração é bastante propícia para a indústria médico-cirúrgico-farmacêutico-cosmética oferecer produtos e intervenções para atender aos anseios de saúde e de boa aparência assim configurados. E, se for necessário, remediar os efeitos emocionais e estresses dos eventuais reveses na busca desgastante da felicidade na vida moderna. Em geral, esta noção de procura da felicidade (ou popularmente: “correr atrás de seu sonho”) tende a se configurar em metas traçadas que implicam em gestão racional e responsável de ações persistentes para, quiçá, atingir um resultado que seja considerado um êxito culturalmente legitimado. Em termos bem esquemáticos: ter perseverança (e saúde) para esta jornada e, se possível, obter o merecido retorno financeiro e o correspondente reconhecimento social no competitivo âmbito neoliberal contemporâneo.
IHU On-Line – Quais os riscos da sedução das tecnologias de aprimoramento para produzir um projeto humano melhor para a humanidade? Aliás, o que seria um projeto humano melhor?
Luis David Castiel – As tecnologias de aprimoramento são difundidas, em geral, como tendo o papel fundamental de ferramentas para produzir um projeto humano melhor, mais bem sucedido, de acordo com os valores dominantes. Mas a busca da felicidade como projeto humano se torna um tipo estranho de dever que demanda tecnologias de aprimoramento para garantir que a existência renda motivos para autossatisfação maximizada. Quem quer que seja infeliz ou perdedor (loser – como costumam dizer os estadunidenses) pode ser malvisto. Uma vez que a autossatisfação está atada ao sucesso na vida humana, ela pode se tornar uma desgastante responsabilidade pessoal para cada um que endosse essas proposições. Voltaremos ao final a esta questão.
Assim, talvez um projeto melhor para a humanidade fosse tentar estratégias coletivas em busca de alternativas ético-políticas que enfrentem a ideologia utilitarista que possui o poder retórico de se apresentar como o único caminho viável e que procura tornar natural o capitalismo que, dessa forma, se torna a realidade. Realidade que apresenta seus resultados de ganhos e perdas como se fossem meras questões de perspicácia, sorte e tirocínio num mercado regido por leis próprias de funcionamento e de busca de equilíbrio, sem contradições .
De certa forma, há um grande risco das tecnologias de aprimoramento não darem conta de produzir tal projeto em termos coletivos, caso as condições ético-políticas utilitaristas neoliberais se mantiverem presentes. De qualquer maneira, há a priori a questão de desigualdades de acesso a tais tecnologias que, inevitavelmente, têm o potencial de produzir efeitos eugênicos. Alguns poderiam desfrutar de suas possíveis vantagens, mas muitos, os consumidores falhos (como diz Bauman), teriam muitas dificuldades para isso.
IHU On-Line – Quais as implicações da medicalização da andropausa (reposição hormonal masculina), da calvície e da disfunção erétil?
Luis David Castiel – Estes itens indicam a medicalização de aspectos relacionados a noções legitimadas de masculinidade – sob a influência dos vetores socioculturais dominantes, especialmente em certos setores da sociedade que seguem valores de aparência e desempenho atrelados a ideais de jovialidade, vitalidade, força física e potência sexual. Como se fosse desejável e necessário manter qualidades viris com o avançar da idade. De modo simplificado, a sustentação da ideia de masculinidade sob o ponto de vista do funcionamento corporal parece muito vigorosa na autoconcepção identitária dos homens. Há evidentes interesses da indústria farmacêutica nesse sentido e que entram em ressonância com tais questões.
Mesmo que os empreendimentos médicos e farmacêuticos tenham mercadorizado estas condições e oferecido tratamentos para a calvície e andropausa, não se define claramente se estas condições de fato são problemas propriamente médicos no sentido de tratar-se de patologias mensuráveis e tratáveis. Na verdade, não é absurdo indicar que talvez pertençam a um campo que costuma ser chamado de “medicina dos desejos e das vaidades” .
IHU On-Line – Quais os riscos do uso de hormônio do crescimento em crianças de baixa estatura? Como se relaciona aqui a questão da altura como valor social?
Luis David Castiel – Não pretendo tratar diretamente as questões do risco do uso hormônio do crescimento em crianças de baixa estatura. Mas, sim, dos possíveis aspectos relacionados à questão da altura como valor social, especialmente no âmbito masculino. O debate não se refere à questão da baixa estatura constituir-se como uma doença e os riscos médicos em relação ao tratamento, mas, sim, quão “ruim” é ser “baixinho” na vida adulta...
As discussões sobre o uso do hormônio do crescimento não são recentes. Desde meados dos anos 1980, nos Estados Unidos, partidários do seu emprego faziam questão de apontar que maior estatura masculina é vinculada a maior status social, atratividade física e sexual elevadas, sucesso profissional e, até, capacidade de melhor desempenho eleitoral. Meninos baixos sofreriam mais assédio moral por seus colegas e teriam mais dificuldades de encontrar esposas.
Parece que a grande preocupação de pais pertencentes a determinados estratos sociais com a capacidade de desempenho e com a aparência dos filhos na infância diz respeito mais à preparação nesta fase crucial para a vida adulta jovem, quando a intensa competitividade social pode trazer incertezas e dificuldades ao alcance de metas socialmente consagradas para atingir a felicidade, mediante, por exemplo, o sucesso em conseguir parceiros sexuais atraentes, casamentos satisfatórios e carreiras profissionais em trabalhos privilegiados, estáveis e bem remunerados. Enfim, trata-se de lutar com as melhores armas à disposição no mercado para ser bem sucedido na vida, levando em conta os critérios de êxito e status elevado socialmente estabelecidos .
IHU On-Line – Como as tecnologias de aprimoramento interferem em relação aos mal-estares da cultura contemporânea, como a busca de longevidade e a redução/controle dos processos de envelhecimento? Quais relações podem ser estabelecidas entre a medicalização e a ideia de “felicidade”?
Luis David Castiel – Se levarmos em conta que a noção da felicidade vigente coloca a questão de “quanto” tal ideia está vinculada ao capitalismo consumista, não é despropositado afirmar que há um vínculo íntimo entre esta felicidade e o volume e qualidade do consumo. Pode-se até dizer-se que a nossa era moderna começou de fato com a proclamação do direito universal à busca de felicidade. Busca compulsória de felicidade, sobretudo, como autossatisfação em um exercício que vincula individualismo e capitalismo globalizado.
Os mercados alteram o sonho da felicidade como um estado de vida satisfatória para a busca infindável dos meios para se alcançar essa vida feliz, que sempre parece escapar para adiante. Numa sociedade de consumidores, estamos felizes enquanto não perdemos a esperança de sermos felizes. Infelizmente, a obsolescência das mercadorias nos faz felizes de maneira fugaz. Há uma contradição interna importante em uma sociedade que estabelece para todos um padrão que a maioria não consegue alcançar .
A felicidade definitiva parece ser a de realizar o sonho humano de permanência terrena, longevidade infinita, eternidade do indivíduo. vale a pena comentar brevemente os tipos de ciências e tecnologias de aprimoramento dirigidas ao envelhecimento (e à finitude) através de uma proposta de classificação, mesmo tendo áreas de superposição:
1) cosmética – a) práticas cosméticas: botox, cirurgias plásticas, cremes antirrugas, etc.; b) regimes profiláticos: dietas, exercícios, estilos de vida saudáveis; c) técnicas compensatórias: medicamentos para disfunção erétil, hormônio do crescimento;
2) médica – a) medicina regenerativa: terapia com células-tronco; b) intervenções clínicas para doenças específicas do envelhecimento (câncer, artrites, doenças cardíacas); c) terapias médicas baseadas em mudança de estilo de vida: dietas e exercícios dirigidos a doenças degenerativas do envelhecimento;
3) biológica – a) pesquisas epidemiológicas: populações de centenários e genes; b) modelagem evolucionária: descobrir e superar os limites evolucionários da duração da vida; c) ciência dos processos celulares e de seu respectivo envelhecimento; d) ciência genômica: mapeamentos e sequenciamentos gênicos para verificar processos genéticos responsáveis pelo envelhecimento para desenvolver terapias genéticas que podem retardar interromper ou reverter processos de envelhecimento;
4) imortalista – meta redentora da medicina do aprimoramento definitivo: alcançar a imortalidade: a) mediante substâncias e dispositivos supostamente com poder de ampliar a longevidade, incluindo câmaras criônicas; b) programas científicos para a imortalidade biológica e/ou cibernética: projeto da “Singularidade Tecnológica” de Ray Kurzweil ou as “Estratégias para uma Engenharia da Senescência Ínfima” de Aubrey de Grey .
IHU On-Line – O que pode ser dito sobre a medicalização da comida a partir da concepção de que o alimento é cada vez menos considerado por seu sabor, mas cada vez mais por seu valor calórico (preferentemente baixo) de tal forma que assume o lugar de medicamento, como tratamento preventivo para os riscos das dietas não restritivas?
Luis David Castiel – A questão atual relativa ao medo de engordar chama a atenção para as dimensões morais do problema, assim como faz a perspectiva da ansiedade excessiva diante do risco e das exigências de autocontrole na ingesta. De todas as formas, a relação da promoção da saúde alimentar com o ganho de peso tende a se inscrever no âmbito dos tratamentos morais que acompanham o mal-estar na civilização globalizada e a correspondente racionalidade contraditória na operação de suas estruturas normativas duais que simultaneamente estimulam e restringem. As pessoas, de um modo variável, podem não passar incólumes às precarizações e sofrimentos provocados por este panorama.
Há necessidade de análise crítica dos modos opressores produzidos pelos aspectos paradoxais do capitalismo que se naturalizam a ponto de serem considerados como a “realidade”. Isso ocorre, por exemplo, mediante o tratamento moralista dos riscos à saúde através da normatividade restritiva da promoção da saúde alimentar voltada para uma ideia exacerbada socioculturalmente de controle do peso.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?
Luis David Castiel – Para tentar fazer uma síntese, convivemos com uma dominância das dimensões médicas em nossa sociedade – algo que pode ser representado pelo processo de medicalização, que se sustenta em função da procura de saúde ter ocupado na nossa época o formato de busca preventiva de saúde sob a égide da segurança individualista. Algo que pode até chegar a assumir a finalidade fundamental da existência: ser longevo com vitalidade.
E o saber médico passa a ter o papel não apenas da prevenção e da cura, mas também de fornecer significados a questões autoidentitárias do indivíduo em relação ao mundo social a seu redor e se estabelece também como moral e se institui como matriz comportamental para além dos domínios biológicos, determinando modos de se levar a vida. E é até capaz de gerar uma pedagogia do medo através das possibilidades de perda dos benefícios da vitalidade longeva para aqueles que não se pautam por condutas preventivas preconizadas como sadias.
Dessa forma, o saber médico se aproxima de uma forma de “religião” ao ocupar espaços cada vez maiores no cotidiano em rituais em que cada um de nós deve buscar e manter constantemente a condição de sãos (e salvos) mediante a crença e a prática dos enunciados do conhecimento biomédico vigente e que tende a ocupar um lugar todo-poderoso. Assim, é possível estabelecer nexos entre saúde e salvação. É preciso seguir o catecismo preventivo proveniente das muitas recomendações médicas que exaltam as virtudes que levam a boas ações de saúde, se estendendo desde a carteira de vacinação na tenra idade (algo realmente benéfico) aos exames regulares de check-up a partir dos quarenta anos, evitando fumo, álcool, sedentarismo, dietas não balanceadas – maus hábitos de saúde, enfim. Com isso o indivíduo se candidata a ser atendido à benção da probabilidade mais elevada de não ser atingido pelo mal – a enfermidade, o sofrimento e a morte antes do prazo prometido pela expectativa de vida do contexto onde vive.
A carga das responsabilidades individuais
Enfim, diante do exposto até aqui, aqueles que compartilham das críticas ao panorama do estado de coisas fragmentadamente descritas – sobretudo por suas facetas de produção de sofrimentos e sustentação de desigualdades – têm uma importante tarefa no âmbito ético, qual seja, atuar na busca de outros compromissos ético-políticos que se afastem da perspectiva utilitária de agentes supostamente autônomos e racionais.
Todos estamos envolvidos em nossas missões de carregar esta carga excessiva de responsabilidades individuais que atuam como imperativo e modelo de referência em várias dimensões, não só da saúde como também da vida econômica e social. Como se fosse viável a obrigação de se produzir soluções pessoais para complexidades e paradoxos produzidos sistemicamente.
Todos somos, de alguma maneira, colocados na obrigação de lidar com propostas irrealistas de administração de supostos benefícios diante de custos estipulados a priori em um quadro de opções bastante restritas em termos de projetos humanos de felicidade afastados de perspectivas coletivas emancipatórias. Os projetos que apontam para uma ideia de felicidade disponível no mercado se confundem com autossatisfação e, infelizmente, para a maioria dos mortais, possuem um prazo de validade determinado.
Enfim, vivemos numa época acelerada de riscos, prevenções e responsabilidades individuais em meio a impressionantes avanços tecnológicos que podem nos trazer longevidade, confortos, mas também desconfortos. Para terminar com certo humor, cabe a anedota de Carl Elliott no desfecho de seu livro referido acima, em função dos muitos estímulos que têm aqueles com poder aquisitivo para buscar autossatisfação através de tecnologias de aprimoramento para terem certeza existencial de usufruírem suas vidas ao máximo. O trem saiu da estação e não sabemos para onde está indo. O mínimo que podemos fazer é estarmos seguros que está fazendo a viagem sem problemas, sem atrasos, com boa velocidade.