Em condições históricas que podem tornar tudo um “manicômio”, é preciso repensar o poder do psiquiatra e da psiquiatria sobre a equipe e o cliente, pondera José Jackson Sampaio Coelho. Atualmente saúde e doença são constitutivos de um processo histórico-social, observa
Por: Márcia Junges
“A psiquiatria é uma especialidade médica (clínica e epidemiologia), uma consultoria para as demais especialidades médicas (interconsulta) e uma medicina especial (psiquiatria social, na fronteira do direito e da religião), dada a transcendência de seu objeto (a mente, diferente do cérebro, objeto do neurologista; do psiquismo, objeto do psicólogo; e do inconsciente, objeto do psicanalista). Qual, portanto, a contribuição positiva da psiquiatria à dimensão saúde mental do campo da saúde coletiva? Essa é a grande pergunta que nos desafia à humildade”. A reflexão é do médico psiquiatra José Jackson Coelho Sampaio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E adverte: “O poder individual do psiquiatra e da psiquiatria, sobre a equipe e o cliente, pode tornar-se poder da equipe e do campo da saúde mental sobre o cliente. Como já dissemos (...), nas nossas condições históricas, tudo pode tornar-se manicômio”. O médico aborda também a questão da reforma psiquiátrica, ponderando que ela é uma “dimensão do movimento antimanicomial, operativo de uma linha de intervenção”. E resgata as origens da psiquiatria: “o psiquiatra nasce como alienista, depois do grande asilamento da loucura, realizada por meio das grandes instituições de segregação. A imprecisão conceitual de loucura, hoje categoria do senso comum, foi entendida como obstáculo à codificação científica da disciplina, daí a criação do neologismo alienista/alienismo”.
José Jackson Coelho Sampaio é médico psiquiatra graduado pela ABP/AMB, mestre em Medicina Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo – USP. É professor titular em Saúde Pública, líder do Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho, docente efetivo do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará – UECE.
Confira a entrevista.
José Jackson Coelho Sampaio é médico psiquiatra graduado pela ABP/AMB, mestre em Medicina Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo – USP. É professor titular em Saúde Pública, líder do Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho, docente efetivo do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Ceará – UECE.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – De que forma foi implementada no Brasil e quais são as maiores conquistas da reforma psiquiátrica?
José Jackson Coelho Sampaio – O Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica – MBRP, constituído na década de 1990 e em torno da luta pela aprovação do Projeto de Lei Paulo Delgado, envolve quase o mesmo conjunto de atores de processo anterior, surgido a partir da visita de Franco Basaglia ao Brasil, em 1979, e que era denominado de Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental. Penso que a mudança de denominação deveu-se à convicção de que deveríamos focar no objetivo político do fim do modelo assistencial hospitalocêntrico, de natureza asilar, e não na natureza dos atores, passível de confusão com ação trabalhista ou corporativa.
O resultado da luta do MBRP, na década de 1990, foi a aprovação da lei federal e de várias leis estaduais, como a do Ceará, por exemplo, que precede a federal em nove anos. O resultado da aplicação da lei, na primeira década do século XXI, é de evidente e substantiva mudança no marco normativo e nas ações de atenção ao portador de transtorno mental no Brasil. Os leitos psiquiátricos em hospitais especializados perderam 2/3 de seu número. A rede de Centros de Atenção Psicossocial rapidamente ultrapassou o número de mil unidades (no Ceará já ultrapassou as cem unidades), o financiamento já inverteu o perfil e a sociedade brasileira incorporou o novo paradigma, embora não de modo extenso e homogêneo, mas conquistou parcela significativa da mídia. Além disso, a reforma psiquiátrica pública associou-se à reforma sanitária, integrando o campo da saúde mental na atenção primária, por meio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família – NASF e do matriciamento a partir dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS.
Superação de paradigma
Correspondendo aos conceitos de loucura e de alienação, aquilo que, groso modo, podemos chamar de assistência psiquiátrica, estabelece uma organização à qual denominamos de asilar, caracterizada por exclusão, isolamento em instituição fechada, mortificação do eu e mistura entre a embrionária ordem médica da enfermidade com a ordem moral do desregramento, a ordem jurídica do crime, a ordem social da miséria e a ordem política da subversão.
Correspondendo aos conceitos de psicopatia e de enfermidade mental, a assistência psiquiátrica estabelece uma organização à qual denominamos de psiquiatria clássica, enfocando a ordem médica da enfermidade e dispondo de hospital psiquiátrico especializado e de um arsenal terapêutico biofarmacológico, revolucionários em relação ao paradigma anterior, mas com radical dificuldade de lidar com a interface jurídica do crime, as possibilidades de cura e a manutenção dos vínculos familiares, laborais e comunitários em simultaneidade com o desenvolvimento dos projetos terapêuticos.
O paradigma da atenção psicossocial e territorial busca superar os limites da psiquiatria clássica e instaura novos dispositivos de cuidado, incluindo a promoção da saúde mental, novas relações entre profissões (multiprofissionalidade), conhecimentos (interdisciplinariedade), dimensões das políticas públicas (intersetorialidade) e dimensões do sujeito (integralidade).
IHU On-Line – Qual é a importância da luta antimanicomial para a sociedade como um todo?
José Jackson Coelho Sampaio – Simultaneamente à evolução do MBRP, uma parte de seus atores, com variados outros novos, instituiu o Movimento da Luta Antimanicomial – MLAM, voltado para uma crítica da própria organização histórica brasileira, encontrando no estado burocrático-autoritário e na herança colonial-escravista respaldo para uma miríade de expressões manicomiais (escola, família, empresa, etc.) da nossa vida societária. O MLAM tem apresentado objetivos amplos e resultados práticos muito pequenos, refugiando-se, grosso modo, entre psicólogos e assistentes sociais, e criticando os limites e a identificação do MBRP com as políticas de Estado.
Como se vê, faço distinção entre MBRP e MLAM, pelos atores, pelos objetivos e pelos dispositivos práticos, pois, se o primeiro foca a transformação da política de cuidados ao portador de transtorno mental, dentro do aparelho do estado, o segundo foca uma transformação de paradigma do comportamento social, buscando afetar os determinantes da produção de subjetividades autoritárias, excludentes, preconceituosas, estigmatizadoras das diferenças que escapem ao “ideal de ego” hegemônico na sociedade. Além do mais, pressupondo uma heterogeneidade profundamente contraditória da sociedade brasileira, não há como identificar uma “sociedade como um todo” para avaliar impactos. Esse “todo” seria uma abstração ideológica, ou uma abstração normativa, baseada no conceito moral ou estatístico de média.
IHU On-Line – Quais são os nexos entre a luta manicomial, a autonomia do sujeito e a democracia em nosso país?
José Jackson Coelho Sampaio – O MLAM realiza a crítica ideológica do estado burocrático-autoritário e da sociedade excludente-estigmatizadora pela afirmação de que, em certas condições sociais, econômicas e políticas, em certo momento histórico, todos os dispositivos organizacionais de uma sociedade (escola, igreja, empresa, sindicato, família, partido político, clube recreativo, etc.) podem tornar-se “manicomiais”. A reforma psiquiátrica é uma dimensão do movimento antimanicomial, operativo de uma linha de intervenção.
Evidencia-se que a humanização do cuidado, a acessibilidade de todos ao jogo dialético dos direitos e deveres, a produção de subjetividades criativas e autônomas e o desenvolvimento do protagonismo dos indivíduos fundamentam a sociedade democrática, sem confundir democracia com uma natureza possível (“liberal burguesa”), uma forma possível (“democracia representativa”), uma tática possível de gestão pública (“escolha dos governantes”), ou com a simples expansão da oferta de emprego/renda/trabalho.
IHU On-Line – Sob quais aspectos a saúde mental é um tema que se insere na medicina social?
José Jackson Coelho Sampaio – A política de atenção ao portador de transtorno mental, no Brasil de hoje, compreende saúde e doença como um processo histórico-social e constitui saúde mental como campo de práticas profissionais criticamente incluídas e integradas no campo da saúde coletiva. Então, incorpora o paradigma da atenção psicossocial territorial a ser praticada de modo multiprofissional, interdisciplinar, intersetorial e integrado. A prática dessa política desdobra um novo processo de trabalho e um novo conjunto de tensões entre terapeutas e clientela, entre equipe de terapeutas e equipe de gestão, e dos terapeutas entre si mesmos, por conta das diferenças individuais, corporativo-profissionais e ideológico-teóricas.
A medicina social é a contribuição que a profissão médica aporta ao campo da saúde coletiva, que se agrega, se modifica e modifica as demais contribuições, como as dos enfermeiros, dos psicólogos, dos terapeutas ocupacionais, dos assistentes sociais, dos arte-terapeutas, etc.
Portanto, saúde mental, como saúde do idoso e saúde e trabalho, por exemplo, é um tema transversal do campo da saúde coletiva. A medicina social é a contribuição disciplinar da profissão médica ao tema e ao campo. Mas há um problema com a expressão “saúde mental”: ela designa, em seu uso quotidiano, técnico ou teórico, simultaneamente um conjunto de profissões (“fulano é trabalhador da saúde mental”), um conjunto de instituições e práticas (“política e planejamento em saúde mental”, “sistema de saúde mental”), um conjunto de disciplinas e teorias (“a psicologia integra os conhecimentos da saúde mental”) e um estado do ser compreendido por certa qualidade comportamental (“isto faz bem à saúde mental”).
IHU On-Line – Qual é a atualidade e a pertinência da concepção do poder psiquiátrico, formulada por Foucault para compreendermos e repensarmos a psiquiatria e a saúde mental em nosso tempo?
José Jackson Coelho Sampaio – A equipe multiprofissional, interdisciplinar, realizando projetos em rede, sob supervisão clínico-institucional, visa relativizar o poder de um especialista. Mas, numa sociedade individualista, competitiva, profundamente dividida em classes, admitindo a reprodução das relações de opressão/exploração, qualquer relação que implique em empírica ou suposta desigualdade, interpretada como superioridade x inferioridade, sejam homem x mulher, pai x filho, professor x aluno, terapeuta x cliente, por exemplo, será vivida como relação de poder. Assim, portanto, será vivida como relação de dominação.
O poder individual do psiquiatra e da psiquiatria sobre a equipe e o cliente pode tornar-se poder da equipe e do campo da saúde mental sobre o cliente. Como já dissemos, nas nossas condições históricas, tudo pode tornar-se manicômio. A categoria “poder” não pode ser esquecida em nenhuma análise que se pretenda crítica: o enfermeiro e a dnfermagem como donos do quotidiano, o psicólogo e a psicologia como donos da interpretação, etc.
A psiquiatria é uma especialidade médica (clínica e epidemiologia), uma consultoria para as demais especialidades médicas (interconsulta) e uma medicina especial (psiquiatria social, na fronteira do direito e da religião), dada a transcendência de seu objeto (a mente, diferente do cérebro, objeto do neurologista; do psiquismo, objeto do psicólogo; e do inconsciente, objeto do psicanalista). Qual, portanto, a contribuição positiva da psiquiatria à dimensão saúde mental do campo da saúde coletiva? Essa é a grande pergunta que nos desafia à humildade.
IHU On-Line – Em O poder psiquiátrico, Foucault fala, entre outras coisas, da psiquiatrização da criança e do criminoso. Como podemos compreender essa transposição da psiquiatria para outros sujeitos que não o louco “classicamente” definido?
José Jackson Coelho Sampaio – A loucura não constitui categoria clássica no sentido em que remonte ao mundo antigo, greco-romano, uma vez que lá havia era a possessão panteísta. Pelo contrário, constitui-se como categoria clássica no sentido de ser paradigmática de uma época, Renascimento-Iluminismo, revolucionária em relação à categoria medieval da possessão pelo demônio.
Na transição do século XVIII para o XIX, a psiquiatria se constitui em especialidade médica (inicialmente como alienismo) e compartilha o processo de constituição do poder médico, em base científica positivista, na dimensão mais sensível e ideológica daquilo que, hoje, chamamos de subjetividade. Assim, é a ciência e a medicina que disputarão poder explicativo e de controle sobre as normalidades, as alterações admissíveis e as alterações patológicas (desvios, doenças), do corpo e dos comportamentos, com a religião e com o sistema jurídico.
A psiquiatrização dos comportamentos se dá como alienação, em seguida como psicopatia e como doença mental, nunca como loucura, em nome da ciência e da medicina, construtores da racionalidade moderna, substitutos da metafísica religiosa e competidores do formalismo retórico do direito. Atualmente uma filosofia e uma ciência das religiões, bem como uma filosofia e uma ciência do direito, submetem religião e direito às racionalidades positivista e neopositivista, tanto quanto, mais atrás, submeteram a díade psiquiatria/medicina. O fundamento dessas racionalidades pode ser encontrado na lógica de desenvolvimento do capitalismo, carente de uma objetividade que instituísse a universalização do mercado e da mercadoria. Universalização somente possível com a transformação de todas as experiências e produtos humanos em valor de troca, isto é: “coisas com preço”.
Enfatiza-se que possessão panteísta, possessão pelo demônio, loucura, alienação, psicopatia e doença mental não são palavras sinônimas, que representam o mesmo fenômeno, pois referem fenômenos diferentes. Lembremo-nos do magnífico ensaio de Foucault sobre o caso Michel Rivière: a disputa entre a Igreja Católica (“é desgraça, derivada do pecado dos pais, onde há ausência de pecado original, no indivíduo vítima, que deve ser protegido”), sistema jurídico napoleônico (“é defeito que impede os direitos da cidadania e deve ser tutelado”) e a medicina psiquiátrica (“é patologia a ser tratada, se possível controlada ou curada”), pela tutela dos portadores de deficiência/retardo mental.
IHU On-Line – O que é a epidemiologia da imprecisão? Em que medida a saúde/doença mental são objeto da epidemiologia?
José Jackson Coelho Sampaio – Em minha tese de doutorado (USP/FMRP, 1992), que resultou em livro (Fiocruz, 1998), defendo que o mundo de doenças infectocontagiosas, resultando em amplo número de mortes e vidas humanas curtas, só poderia constituir uma epidemiologia da contagem de óbitos (índices e coeficientes de mortalidade) e na fotografia de aparências de evento agudo, único na singularidade do indivíduo, porém de massa.
A crescente amplitude da esperança de vida, derivada das tecnologias médicas de diagnóstico, de prevenção e de tratamento, resulta, por sua vez, em advento do crônico-degenerativo, das comorbidades e dos processos alérgicos, imunológicos, psicossomáticos e somatopsíquicos. Este novo perfil exige uma nova epidemiologia, que não confunda aparência (sinais, sintomas e síndromes) com essência (natureza de cada fenômeno): uma epidemiologia do sarampo e da tuberculose não pode dar conta da psicose psicogênica e do transtorno neurótico, por exemplo.
A epidemiologia dos processos mentais (personalidade, sofrimento, doença mental) indica a necessidade de um novo paradigma epidemiológico, que pode ser paradigmático para toda a nova natureza crônica, cumulativa, radicalmente imprecisa na fonte (não defeito da técnica diagnóstica, por exemplo), de transtornos mesmo que de base objetivamente orgânica. O processo saúde/doença.
Essa epidemiologia exige profunda revisão epistemológica, metodológica e instrumental, incorporando a crítica da relação entre história da base geral (há uma especificidade da doença) e dinâmica da expressão (há uma singularidade da doença nesta pessoa); entre aparência (formas contingentes, descritíveis e mensuráveis) e essência (natureza lógica de gênese e curso); e entre procedimentos e instrumentos de investigação, de interpretação e de exposição de resultados e conclusões. Ora, isso vai exigir a triangulação metodológica (quantiqualitativa) e a construção de territórios de pesquisa (territórios vivos, ecológico-sociais, superando as simples medidas genéricas de tendência).
IHU On-Line – Em que diferem as três epidemiologias do domínio psiquiátrico: a da personalidade, a do sofrimento psíquico e a da doença mental?
José Jackson Coelho Sampaio – O debate epistêmico sobre a relação essência/aparência é instaurada pelo debate científico de construção de objetos. Cada disciplina científica, em sua constituição, refina seu próprio objeto e sua metodologia específica, derivada dos princípios e diretrizes próprios da ciência. Se o objeto da psiquiatria é a mente, unidade relacional cérebro (dimensão física, infraestrutura biológica)/consciência (dimensão psicológica, supraestrutura do psiquismo propriamente humano), então é preciso distinguir três dimensões expressivas (objetos) do processo fenomênico mental.
Vejamos a dinâmica da consciência, se tomada nas dimensões “conservadora/adaptadora” x “inovadora/superadora”, teremos a identidade e a criatividade, respectivamente; mas se tomada nas dimensões “percepção para si mesmo” x “percepção para os outros”, teremos a subjetividade e a personalidade, respectivamente. A personalidade é o modo como a consciência de cada um é decodificada e organizada pelos outros, segundo padrões, molduras sociais de (re) conhecimento. Daí, a possibilidade da personalidade ser decodificada em condição saudável (personalidade pd), condição de sofrimento (alteração dolorosa, explicável segundo lógica de causas e determinações) ou condição de doença (alteração estranhável, mutiladora das experiências vitais).
Vejamos agora a questão dos usos da palavra “depressão”, por exemplo: designa um conjunto de sinais, aparências observáveis, e de sintomas, aparências declaradas, como padrão de comportamento, não crísico e funcional aos projetos de vida (personalidade); os mesmos sinais e sintomas, como comportamento conjuntural, agudo porém não necessariamente grave, crísico e explicável como reativo a certos eventos de frustração ou perda, com olhar retrospectivo, oscilantemente fixado no passado e nos movimentos dos sentimentos (sofrimento); ou os mesmos sinais e sintomas, perturbadores dos significados atribuídos ou apenas associáveis de modo remoto, agudo ou crônico, porém crísico, reativo a certos eventos profundos, provavelmente remotos, de frustração ou perda, com olhar retrospectivo, oscilantemente fixado no passado e nos movimentos dos sentimentos (doença). No caso da doença, ainda teríamos que compreender se causas e determinantes são predominantemente psíquicos ou orgânicos.
O fato é que, se a epidemiologia constitui radicalmente uma experiência de fotografar a ocorrência de fenômenos numa população, ela, no processo de compreender, precisará seguir o fluxo dialético do pensamento: descrever, analisar, sintetizar, contextualizar historicamente e criticar teoricamente.
IHU On-Line – A psiquiatria compreende o louco e o doente mental como sinônimos? Por quê?
José Jackson Coelho Sampaio – A psiquiatria nasce, na transição do século XVIII para o XIX, exatamente superando o conceito de louco, instituindo o de alienado, sucessivamente seguido do de psicopata e do de doente mental. Vejamos melhor este percurso:
A Antiguidade constituiu o paradigma da possessão panteísta quando se entendia que cada comportamento alterado seria regido por um deus: Mania (ainda mantemos o nome, em começo de desuso para transtorno bipolar), Lissa (o nome desapareceu, mas indicava a melancolia árabe e, talvez, a depressão antes de este conceito tomar a amplitude genérica que adquiriu na contemporaneidade), Pan (o nome tornou-se extenso, para qualificar síndrome: do pânico). A Idade Média e o Renascimento realizaram a transição do paradigma da possessão (“as alterações de comportamento eram regidas pelo demônio”) para a loucura (distinguida conceitual e praticamente da possessão e do mau olhado, porém entregue aos padres católicos para o diagnóstico diferencial e para as prescrições corretivas, o fogo para a possessão, o exorcismo para o mau olhado, a “nau dos insensatos” para a loucura).
O psiquiatra nasce como alienista, depois do grande asilamento da loucura, realizada por meio das grandes instituições de segregação. A imprecisão conceitual de loucura, hoje categoria do senso comum, foi entendida como obstáculo à codificação científica da disciplina, daí a criação do neologismo alienista/alienismo. Porém, no correr do século XIX, com a medicina firmando-se científica e tecnologicamente, fundamentada no paradigma do organicismo positivista, refina-se o conceito de alienação para o de psicopatia (hoje, a palavra designa um grupo de transtornos marcado pelo prejuízo moral profundo e pelo curso linear não crísico). Neste momento, baseando-se na Lei de Broussais, afirmam-se dois modelos sobre a gênese da psicopatia: o sifilítico (“toda psicopatia seria modo de expressão cerebral da sífilis”) e o epiléptico (“toda psicopatia seria modo de expressão da epilepsia”). A rapidez das conquistas diagnósticas e terapêuticas e a expansão da capacidade discriminativa do olhar médico rapidamente introduziram o conceito mais genérico de doença mental, multiforme, a ser distinguida do padrão ouro da saúde mental.
Hoje, entendemos saúde e doença, incluindo saúde mental e doença mental, como constitutivos de um processo histórico-social, por sua vez expressão de outro processo, qual seja, o processo vital.
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