Nossa sociedade é baseada na exploração humana, e a violência é intrínseca a esse modo de produção, observa Osvaldo Gradella Júnior, e instituições como as psiquiátricas refletem tal característica. Classificação de normal ou anormal é “imposição ideológica do modelo de racionalidade burguesa”
Por: Márcia Junges
“Nas sociedades pré-capitalistas, aptidão ou inaptidão para o trabalho não era um critério importante na determinação do normal e anormal. Serão as transformações iniciadas com o advento do modo de produção capitalista” que irão definir os critérios daqueles que deveriam ser internados, explica o psicólogo Osvaldo Gradella Júnior, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “Nesse momento, saúde-doença passa a ser identificada como ordem-desordem, e a loucura começa a ser vista como um problema social, resolvido pela Justiça”, complementa. Segundo ele, “as instituições, em geral, reproduzem as formas de relações sociais predominantes na sociedade e, em uma sociedade que tem como base a exploração do homem pelo homem, a violência é inerente a esse modo de produção”. De acordo com Gradella, sob a égide do capitalismo não há outra forma de lidar com os excluídos que ele mesmo se encarrega de produzir, a não ser internando-os e isolando-os. Outra temática da entrevista é o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial, que se constrói a partir de meados dos anos 1970.
Osvaldo Gradella Júnior é graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF, mestre em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas e doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp com a tese Sofrimento psíquico e trabalho intelectual do docente universitário. Professor na Unesp, tem uma vasta experiência e trabalhos na temática de saúde mental.
Confira a entrevista.
Osvaldo Gradella Júnior é graduado em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF, mestre em Psicologia pela Fundação Getúlio Vargas e doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp com a tese Sofrimento psíquico e trabalho intelectual do docente universitário. Professor na Unesp, tem uma vasta experiência e trabalhos na temática de saúde mental.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido a doença mental é uma produção social e histórica? Seria a doença mental um mito, como afirmou Thomas Szasz ?
Osvaldo Gradella Júnior – Bem, dizer que a doença mental é um produto social e histórico implica compreender o momento de seu surgimento, ou seja, quando a loucura é apropriada como objeto de estudo pela medicina. Vamos lá: a loucura é objeto de preocupação dos estudiosos há muito tempo; foi explicada em alguns momentos pela religião e, em outros, pela magia; considerada em alguns momentos como possessão e, em outros, como benção. Até aquele momento, não havia grande mobilidade na organização social, bem como era pouco discriminativa para com as diferenças individuais. Os loucos se misturavam com os pobres, mendigos, doentes venéreos, vagabundos e criminosos que perambulavam pelos campos e locais onde se realizavam as pequenas trocas e, dessa maneira, iam sobrevivendo pela generosidade alheia. Nas sociedades pré-capitalistas, aptidão ou inaptidão para o trabalho não era um critério importante na determinação do normal e anormal. Serão as transformações iniciadas com o advento do modo de produção capitalista, ou seja, as mudanças do sistema de produção servil para um sistema de manufatura, o início da divisão social do trabalho e do trabalho assalariado; a intensa repressão à mendicância, à vagabundagem, à ociosidade (voluntária ou não), à perturbação da paz, consideradas obstáculos para o crescimento econômico; a criação de instituições como casas de correção e de trabalho, hospitais gerais (sem função curativa); de leis e normas que buscavam limpar as cidades de mendigos e antissociais em geral, prover trabalho para os desocupados, punir a ociosidade e reeducar para a moralidade. Nesse momento, saúde-doença passa a ser identificada como ordem-desordem, e a loucura começa a ser vista como um problema social resolvido pela Justiça.
Até o século XVIII ela era objeto de estudo da Filosofia, portanto relacionada às questões da existência, às paixões e às emoções. Será o médico francês Pinel que trará para si a tutela dos “sem razão” e afirmará o direito de serem tratados e curados através dos novos conhecimentos científicos. Apontou a necessidade de um lugar apropriado para o seu tratamento, tirando-os das prisões, hospitais gerais e santas casas de misericórdia, para encerrá-los nos manicômios. Ela adquire, assim, o status de doença mental, apropriada pela medicina e tornando-se objeto de estudo científico.
Quanto a Thomas Szasz, essa afirmação contundente foi significativa para o questionamento dos diagnósticos meramente descritivos que servem somente para rotular e estigmatizar, pois não contribuem para compreender o fenômeno e nem para definir uma ação que garanta resolutividade para aqueles que sofrem. Não penso que possa ser considerada mito, pois a existência objetiva produz sofrimento em todos nós e necessita de acolhimento. Esse sofrimento é concreto e, ao desqualificar esse sofrimento, eu desumanizo o sujeito que sofre.
IHU On-Line – Partindo do caráter social e histórico atribuído à doença mental, é correto tomá-la como sinônimo de loucura? Por quê?
Osvaldo Gradella Júnior – Eu penso que não. Pinel afirmava que a loucura não era orgânica, e que também não podia ser enquadrada no modelo da ciência natural, hegemônica naquele momento histórico. Esse era o teor que dificultava a inserção da loucura na medicina. O tratamento moral utilizado por Pinel se baseava na ideia da alienação mental como uma contradição da razão e, portanto, possível de ser tratada, tanto que as alienações regrediam com esse tipo de tratamento. A alienação, no sentido de estar fora de si mesmo, impedia o sujeito de poder exercer sua liberdade em uma sociedade que se organizava sob a égide da razão. Na tentativa de criar modelos explicativos para ser aceita como ciência, será a partir da construção das unidades nosológicas de Kraepelin que definitivamente a loucura sai do terreno do não orgânico, tornando-se doença mental, ou seja, deslocando o objeto da filosofia para a medicina, sem superar a discussão posta anteriormente sobre as paixões e emoções. Essa mudança implicou que o objeto de estudo da psiquiatria remete-se aos problemas causados aos indivíduos por essa nova forma de organização em que a aptidão para o trabalho é o que define o normal do anormal. Porém, no capitalismo só se apresenta o trabalho alienado que, para Marx , só se efetivava a partir do momento em que se opera uma divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. Dessa forma, realiza-se uma cisão também na consciência, cujo determinante é o trabalho, permitindo, então, que a consciência possa imaginar coisas que não são reais, produto de uma relação fragmentada. Assim, criam-se também as condições para as explicações ideológicas da realidade. Se o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual, também vai determinar o processo saúde/doença compreendido como uma unidade historicamente determinada.
IHU On-Line – Há uma relação específica entre a cronicidade dos doentes mentais e a sua institucionalização? A partir disso, qual é a importância da luta antimanicomial? Por que considera o hospital psiquiátrico como uma instituição da violência?
Osvaldo Gradella Júnior – Quanto a essas questões, foi Erving Goffman quem apresentou essa temática quando faz a análise das instituições e caracteriza algumas delas como instituições totais, tal como o hospital psiquiátrico. O hospital psiquiátrico vai favorecer o processo de cronificação (= embotamento afetivo, isolacionismo, hábitos grotescos, dificuldade de realizar ações práticas, etc.), que serve para justificar a tutela, anular a validade do discurso e do sofrimento do sujeito e permitir a submissão do portador de transtornos mentais a mecanismos de violência institucional. As longas internações e a falta de resolutividade das ações terapêuticas devem-se tanto ao fato da sua concepção científica estar baseada na crença da irreversibilidade do mal como à prática médica estritamente classificatória e descritiva, sem a compreensão necessária do fenômeno, determinando que a única solução possível seja a internação e a medicação ad infinitum.
Em relação às instituições, as que surgiram com o capitalismo foram concretizadas como necessidade somente após o conhecimento do fenômeno estudado, ou seja, como consequência para o enfrentamento e desdobramento daquele fenômeno, agora esclarecido. Em relação à loucura, será o desconhecimento do fenômeno que criará uma instituição para buscar, com o sujeito devidamente aprisionado e encarcerado, as causas que o tornaram diferente dos outros homens. Ao pressupor mobilidade social e liberdade individual, torna-se necessária uma forma de controle e separação entre os sujeitos na determinação do seu lugar social, pois o capitalismo rompe com as formas comunitárias de convivência nas quais o lugar social do sujeito se definia ao nascer (laços sanguíneos) e sem possibilidades de alteração no decorrer de sua vida. As instituições, em geral, reproduzem as formas de relações sociais predominantes na sociedade e, em uma sociedade que tem como base a exploração do homem pelo homem, a violência é inerente a esse modo de produção. Umas das características das instituições é a nítida divisão entre os que têm poder e os que não têm poder, possibilitando uma relação de opressão e violência entre quem detém o poder sobre aqueles que não o têm. Mais do que somente uma relação de opressão e violência, a intervenção sobre a vida do sujeito, classificando-o de normal ou anormal, constitui-se na afirmação de um poder médico que, travestido de científico, nada mais é do que a imposição ideológica do modelo de racionalidade burguesa. O louco, por não produzir, perdeu necessariamente o seu lugar social, fazendo parte da imensa maioria de excluídos gerados pelo capitalismo.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios em se superar a “cultura manicomial”?
Osvaldo Gradella Júnior – Eu penso que o principal desafio está na superação desse modo de produção, pois essa cultura manicomial está justamente articulada com o seu advento e com seu desenvolvimento. A medicina e o direito se digladiam pelo controle das instituições e da sociedade desde Pinel, quando o poder médico amplia a sua competência para cuidar da loucura a fim de cuidar também dos ditos normais, passa a agir na comunidade com o objetivo de prevenção e contribui para medicalizar e psicologizar problemas que eram considerados como de ordem política e social, tais como: marginalidade, delinquência e absenteísmo no trabalho. A psiquiatria preventiva de Caplan retoma essa tradição nos anos 1960, e essa situação se mantém até hoje, pois a questão da autorização judicial para internação em hospital psiquiátrico e a internação compulsória de usuários de droga não só reforçam essa cultura como também criam obstáculos aos avanços da luta antimanicomial. O processo de institucionalização de todos aqueles que não produzem e que estão excluídos definitivamente dessa possibilidade se repetem ad nauseum: os eventos na cidade de São Paulo (crackolândia) e no Rio de Janeiro (internação compulsória) explicitam essa política. No capitalismo não se concebe outra forma de lidar com os excluídos que ele próprio produz a não ser a internação, o isolamento. Uma das possibilidades para essa superação construída pelo movimento da luta antimanicomial é a participação ativa dos usuários e familiares nos serviços de saúde mental, principalmente nos Centros de Convivência, instrumento determinante para a reabilitação psicossocial.
IHU On-Line – Como analisa as conquistas da luta antimanicomial no Brasil? Em que aspectos houve avanços e retrocessos?
Osvaldo Gradella Júnior – Bom. Para esta resposta, penso que é necessário retomar historicamente o que se denominou movimento nacional da luta antimanicomial. A constituição dos movimentos sociais não possibilitam estabelecer uma data, um único acontecimento ou fato histórico, nem esse ou aquele sujeito responsável por tal acontecimento. São produtos de uma série de eventos que se acumulam e imbricam dialeticamente em determinados momentos históricos, com diversos atores sociais, possibilitando um salto qualitativo e sintetizando um projeto de transformação, ainda que em um segmento específico.
O recorte histórico que fazemos é a partir dos anos 1970, por seu imenso teor contestatório e uma conjunção de forças no sentido de combater um único inimigo – a ditadura militar imposta pelo golpe de 1964. Constitui-se num momento impar da história das lutas populares no país e de processos mais democráticos.
O Movimento Nacional da Luta Antimanicomial não é diferente e se constrói a partir de meados dos anos 1970, em uma conjuntura política, social e econômica de contestação em escala mundial, diversificado nos temas e na sua amplitude. No Brasil, o período se caracteriza por grandes mobilizações contra a ditadura instaurada: a vitória do MDB nas eleições de 1974, partido que congregava toda a oposição à ditadura, os protestos contra o assassinato do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nas dependências dos órgãos de repressão política (DOI-CODI), as greves de trabalhadores principalmente no chamado ABC Paulista, a luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita, a reconstrução da União Nacional dos Estudantes, a legalização dos partidos políticos clandestinos e outras lutas contra o regime militar.
Indústria da loucura
Na saúde, o movimento da Reforma Sanitária, o Movimento de Renovação Médica – Reme, a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes, as discussões do encontro da Organização Mundial de Saúde realizado em Alma-Ata sobre a complexidade do fenômeno saúde/doença e sua multideterminação que passam a integrar a nova concepção de saúde, as discussões sobre as equipes multidisciplinares nos serviços de saúde, os Conselhos Populares de Saúde que reivindicam a presença e o cumprimento da função do Estado contribuem para amplificar essas mobilizações que culminam com a realização da VII Conferência Nacional de Saúde em 1986, em que se aprova a proposta do Sistema Único de Saúde a ser encaminhada a Assembleia Nacional Constituinte e integrará a Constituição Federal em 1988.
Nessa conjuntura, surge o Movimento de Reforma Psiquiátrica e o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM, organizados a partir do que se denominou de “Crise da Dinsam – Divisão Nacional de Saúde Mental”, em que se deflagrou uma greve e foram demitidos estagiários e profissionais. Denunciavam-se também os maus tratos na Colônia Juliano Moreira, no Hospital Pinel e Pedro II, a privatização acelerada dos leitos configurando-se em uma verdadeira “indústria da loucura”.
Vários eventos, congressos, simpósios na área de saúde mental também debatiam e denunciavam os hospitais psiquiátricos enquanto única forma de atenção ao portador de transtornos mentais. O Congresso de Camboriú (1979) produziu um manifesto em que denunciava as questões de saúde mental. O III Congresso Mineiro de Psiquiatria em Belo Horizonte, Minas Gerais (1979), contou com a participação de Robert Castel, Michel Foucault e do psiquiatra Franco Basaglia, representante do Movimento de Psiquiatria Democrática e autor da lei n. 180 (Itália), que extinguia o hospital psiquiátrico e propunha formas substitutivas de atenção aos portadores de transtornos mentais. A divulgação do filme do cineasta brasileiro Helvécio Ratton Em nome da razão, sobre o Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais, comparado a um verdadeiro “campo de concentração”, possibilitou, dado a repercussão, um programa de televisão chamado Globo Repórter em um dos maiores canais brasileiros, que expôs e também denunciou a denominada “indústria da loucura”.
18 de maio
No decorrer dos anos 1980, várias experiências com modelos substitutivos ao hospital psiquiátrico são realizadas em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Ceará. Foi realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987) como desdobramento da 8ª Conferência Nacional de Saúde, e suas deliberações apontam para a mudança radical do modelo psiquiátrico vigente e o término da construção de hospitais psiquiátricos. Os termos são praticamente os mesmos que constam da lei elaborada pelo deputado Paulo Delgado em 1989 e aprovado com restrições em 2001.
Essa radicalidade é um dos elementos principais para a produção das condições para a realização do II Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, na cidade de Bauru-SP, em 1987, bem como da aproximação dos usuários e familiares com essa luta e certo distanciamento do Estado. As principais deliberações foram: a adoção da bandeira de luta “Por uma sociedade sem manicômios”, a definição do dia 18 de maio como Dia Nacional da Luta Antimanicomial, a fundação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial formado por familiares e usuários dos serviços de saúde mental, trabalhadores, entidades formadoras, sindicatos, associações de moradores, conselhos profissionais da área de saúde, parlamentares, artistas e todos aqueles que encampassem a luta. Buscava o fim dos hospitais psiquiátricos pelo gasto inútil de verbas públicas e forma de atenção ultrapassada, sem resolutividade, excludente e violenta. Sua proposta era a criação de serviços substitutivos em saúde mental, tais como: Centro de Apoio Psicossocial – CAPS, Núcleo de Apoio Psicossocial – NAPS, hospital-dia, ambulatórios, Unidades Básicas de Saúde com equipes mínimas (um psiquiatra, um psicólogo, um assistente social), emergência psiquiátrica, leitos psiquiátricos em hospital geral, enfermaria psiquiatra em hospital geral, centro de convivência e outras formas de atenção com conteúdo não manicomial.
A loucura concebida como desrazão, como erro, como periculosidade (Iluminismo) transforma-se na noção de diferença, de produção de vida, de subjetividade. As discussões desenvolvidas nos encontros do movimento da luta antimanicomial, congressos científicos e específicos de saúde mental construíram essa noção, procurando romper com cultura manicomial que perpassa pelos profissionais da área que, mesmo trabalhando com os modelos substitutivos, acabavam por reproduzir essa concepção. Ou seja, não se apropriam da discussão que questionou não só o modelo asilar, mas também as concepções cientificistas sobre o fenômeno e também a sua origem histórica de exclusão e normatização.
A partir daí foram quatro encontros nacionais da luta antimanicomial: em 1993, 1995, 1997 e em 2000, respectivamente em Salvador-BA, Belo Horizonte-MG, Porto Alegre-RS e Paripueira-AL. Esse último teve a participação de mais de 6.000 pessoas. Foi considerado o segundo maior movimento social do país, depois do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST. Vários encontros estaduais, regionais, locais, de usuários e familiares foram sendo realizados esses anos por todo o país, alicerçando e fortalecendo o movimento.
Concepção positivista
Do ponto de vista legal, foi apresentado em 1989 o Projeto de Lei n. 3657–B de autoria do deputado Paulo Delgado, que seria aprovado em 2001 com alterações substantivas – a manutenção dos hospitais psiquiátricos. Em 1992, a Portaria 224 do Ministério da Saúde normatiza os CAPS e NAPS, as emergências psiquiátricas e a hospitalização bem como padrões mínimos para atendimento em hospitais psiquiátricos. O Conselho Regional de Psicologia – 6ª Região publicou, em 1997, uma edição de sua revista intitulada “Trancar não é tratar – Liberdade: o melhor remédio” onde apresenta todas as leis e os documentos publicados até aquela data, que supre adequadamente essa questão.
Atualmente, apesar de termos diminuído para menos que 40 mil leitos psiquiátricos no Brasil, ainda mais de 70% são privados. Em São Paulo concentram-se 30,21% desse total. Os acontecimentos ocorridos em Sorocaba-SP e denunciados por várias entidades exemplificam esse retrocesso, bem como as conhecidas discussões e ataques da Associação Brasileira de Psiquiatria. Porém, os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS já são mais de 1.500 e existem em torno de 600 residências terapêuticas no Brasil. O programa governamental De Volta Para Casa, do Ministério da Saúde, é um programa de reintegração social de egressos de longas internações, segundo critérios definidos na lei n. 10.708, de 31 de julho de 2003, com pagamento do auxílio-reabilitação psicossocial, mas que, até dezembro de 2005, só contemplou cerca de 3.500 pessoas de uma proposição de 15 mil beneficiados.
Dizer dos avanços e retrocessos em um movimento é justamente dizer de suas contradições e, ao mesmo tempo, de diferenças e divergências nessa análise, pois ele não se desenvolve de maneira linear e igual em todo o país. Por um lado, esse processo relatado anteriormente demonstra o avanço do movimento, as transformações na rede de serviços, as conquistas legais. Porém, a institucionalização da reforma psiquiátrica trouxe perdas no sentido de refrear o movimento de usuários e familiares na participação efetiva nos serviços substitutivos. Pode não ser uma expressão adequada, mas os serviços retomam uma prática tecnicista e perderam o que era fundamental para sua existência: os usuários e familiares enquanto sujeitos do seu próprio processo de atenção. As instituições formadoras pouco ou nada mudaram de sua concepção positivista, e ao profissional falta a história e uma nova possibilidade prática. Portanto, reproduzem o modelo da ciência natural e do organicismo.
IHU On-Line – Antes da reforma psiquiátrica empreendida por Pinel e Tuke, os loucos tinham a mente livre e o corpo acorrentado naquilo que se convencionou chamar de “internação clássica”. Com o advento da reforma, deu-se algo diverso, encarcerando a “alma” do sujeito, sua consciência. Até que ponto isso ocorreu em função da medicalização da loucura e da ascensão da indústria farmacêutica?
Osvaldo Gradella Júnior – Se entendi a sua questão, penso que são duas coisas diferentes historicamente. A medicalização da loucura se insere em um contexto de transformação social que modificaria radicalmente a sociedade. Como mencionado acima, a intervenção da medicina não se restringe aos loucos, mas estende seu poder a todas as esferas da sociedade. Substitui a ordem jurídica pela ordem da norma produzindo características corporais, sentimentais e sociais respaldadas pelo conhecimento científico. Isso só se realiza em função da alienação, pois, se consideramos que a consciência é um produto histórico-social e criada pelo trabalho, a condição para o surgimento do processo de alienação será a divisão social do trabalho.
Em relação à produção de neuropléticos, a ascensão da indústria farmacêutica ocorre em um momento de reestruturação da ordem econômica mundial pós-segunda guerra que, apesar das expectativas de desenvolvimento econômico e social, trouxe consigo o aumento de pessoas adoecidas por condições de trabalho precárias, desumanas e pelo trabalho alienado. As sucessivas crises do capitalismo ampliam o contingente de excluídos e a precarização das condições de vida, de saúde, de educação, bem como o estreitamento dos espaços do que é considerado normalidade. Essas condições, que são de ordem econômica e social, são consideradas como problemas do individuo e medicalizadas, surgindo uma gama enorme de novos distúrbios com os seus respectivos medicamentos, inclusive para sermos felizes. Em um levantamento recente em um bairro sem unidade de saúde, verificamos o uso cotidiano de medicamentos variados e psiquiátricos sem nenhum acompanhamento médico. Ou seja, a solução medicamentosa para amenizar os conflitos próprios da existência humana.
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