Carta-denúncia escrita pela irmã do paciente gerou a condenação emblemática na área de saúde mental
Por: Márcia Junges
Após ter sido internado numa noite de sexta-feira, no ano de 1999, na Casa de Repouso Guararapes, hoje desativada, o brasileiro de nome Damião Ximenes faleceu na segunda-feira subsequente. O laudo médico apontava como causa mortis uma parada cardiorrespiratória, mas os hematomas e sangue espalhados pelo corpo desmentiam o que a oficialidade afirmava. A irmã de Damião não se conformou e redigiu uma “carta-denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – entre muitos outros órgãos, nacionais e internacionais, de saúde, justiça e direitos humanos, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – ainda em 1999, denúncia esta que foi acolhida por este órgão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”, comenta o psicólogo Martinho Braga Batista e Silva. “A ausência de resposta alimentou a suspeita de que o país tinha responsabilidade por violação de direitos humanos na morte de Damião Ximenes. Em 2005, aconteceu o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos e este mesmo tribunal internacional condenou o Brasil por violação de direitos humanos em 2006”.
As afirmações podem ser conferidas na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Martinho Braga Batista e Silva é graduado em Psicologia pela Universidade de Brasília – UnB e especialista em Saúde Mental pela Fundação Oswaldo Cruz. É mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ com a tese Entre o “desmame” e os “galinha d’água”: a vida fora dos hospícios no contexto da primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos. Docente na UERJ, organizou a obra Legislação em saúde no sistema penitenciário (Brasília: Ministério da Saúde, 2010).
Confira a entrevista.
Martinho Braga Batista e Silva – A primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos, conhecida como Caso Damião Ximenes, aconteceu justamente por conta de uma internação psiquiátrica. Damião Ximenes Lopes ficou internado na extinta Casa de Repouso Guararapes, do município de Sobral, no Ceará, em outubro de 1999, entre a noite de uma sexta-feira e a manhã de uma segunda-feira, momento no qual veio a falecer. Neste fim de semana não se sabe ao certo o que aconteceu, mas quando sua mãe o visitou na segunda-feira viu Damião ensanguentado e com hematomas no corpo, ouvindo de uma funcionária do setor de limpeza do então hospital psiquiátrico privado conveniado ao Sistema Único de Saúde – SUS que ele tinha sido espancado por outros funcionários, conhecidos como “monitores de pátio”, de modo que, quando recebeu a notícia de sua morte pouco depois desta visita, estranhou em muito o laudo médico apontando morte por parada cardiorrespiratória. Outro laudo médico, realizado em outra cidade e por outros médicos, apontou morte por causa indeterminada.
Então a internação psiquiátrica na Casa foi o ponto de partida do Caso, a relação de conflito entre a equipe de um estabelecimento médico e um paciente desencadeando outras relações de conflito, entre família e Estado, entre tribunais internacionais e estados nacionais, bem como entre sanitaristas e juristas. Isso é um dos conteúdos da tese de doutorado por mim defendida em fevereiro de 2011 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFF, cujo título é Entre o ‘desmame’ e os ‘galinha d´água’: a vida fora dos hospícios no contexto da primeira condenação do Brasil por violação de direitos humanos.
Violação de direitos humanos
A irmã deste falecido paciente psiquiátrico enviou uma carta-denúncia para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos – entre muitos outros órgãos, nacionais e internacionais, de saúde, justiça e direitos humanos, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – ainda em 1999, denúncia esta que foi acolhida por este órgão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. O trâmite desta denúncia envolveu um documento enviado pela Comissão ao Brasil ainda em 1999, respondido pelos órgãos do poder Executivo nacional (entre eles a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República e o Ministério da Saúde) aproximadamente três anos depois, de modo que a ausência de resposta alimentou a suspeita de que o país tinha responsabilidade por violação de direitos humanos na morte de Damião Ximenes. Em 2005 aconteceu o julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos e este mesmo tribunal internacional condenou o Brasil por violação de direitos humanos em 2006. Durante este período de aproximadamente seis anos, a denunciante conquistou recebeu a colaboração de movimentos sociais – como o então Movimento Nacional da Luta Antimanicomial na época – e de organizações não governamentais – como a Justiça Global – e o também o apoio de seus parentes, sendo que foi decidido pelo tribunal interamericano e cumprido pelo governo brasileiro que ela, a mãe, o pai e um dos irmãos de Damião deveriam ser indenizados, a totalidade do valor monetário correspondendo a mais de 100 mil dólares em 2007.
Hoje a denunciante dirige o Instituto Damião Ximenes, homenagem ao irmão. O município no qual aconteceu a morte tem uma rede de atenção em saúde mental premiada nacional e internacionalmente, na qual um dos Centros de Atenção Psicossocial – CAPS chama-se justamente Damião Ximenes, outra homenagem póstuma. Atualmente, não existe mais a Casa de Repouso Guararapes, mas uma Rede de Atenção Integral em Saúde Mental – RAISM, cujos estabelecimentos acolhem egressos de internação psiquiátrica e aqueles que viraram notícia nos jornais locais, atendendo pessoas que já eram objeto de escárnio, fofoca, boatos e maus-tratos pela população local na época em que a Casa existia, atendimento este pautado pela perspectiva da inclusão, e não da exclusão social.
Dessa maneira, além da internação na Casa ter sido o ponto de partida, o Caso foi cercado de causas – como a causa antimanicomial, nacional – e também de causos – como os comentários sobre esses egressos de internação psiquiátrica locais. Diferente de Damião, que se tornou um Caso, estes causos em circulação no cotidiano da cidade vieram a ser tornar, com a criação da Rede, casos clínicos em discussão nas equipes de saúde mental e de atenção básica. Essa interação entre a Casa, o Caso, a causa e os causos também foi apresentada e discutida na tese de doutorado mencionada.
Gestão da loucura
Existem muitas outras versões sobre essa condenação. Estou apresentando apenas uma delas, que sublinha também a denúncia e a indenização. Há versões, por exemplo, que acentuam mais ainda a participação dos órgãos de proteção aos direitos humanos neste processo de âmbito internacional, outras dos órgãos de saúde e particularmente de saúde mental, outras ainda de certos atores institucionais. A minha versão leva em conta relações de conflito – como mencionado acima – e formas de gestão da loucura no espaço urbano e doméstico, ou seja, a passagem entre o confinamento asilar, a convivência nos CAPS e o cárcere privado.
Desde a defesa da tese de doutorado em 2011 tenho acompanhado razoavelmente os efeitos da condenação. O Brasil continua sendo condenado por violação de direitos humanos. Houve outras três condenações além do Caso Damião Ximenes. Continuam chegando denúncias ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos, mas a grande maioria deles não chega a virar um caso, quanto mais resultar em condenação.
IHU On-Line – Em que medida o trabalho da desinstitucionalização é uma prática da liberdade? Em última instância, podemos compreender que a psiquiatria tradicional é uma das formas de se executar a governamentalidade da população, ou uma gestão das populações?
Martinho Braga Batista e Silva – Pesquiso o trabalho de desinstitucionalização menos da perspectiva que o aponta como uma terapêutica, e mais daquela que o considera parte da administração pública nacional, em muito inspirado nos estudos de Robert Castel e também do professor Dr. Antonio Carlos Souza Lima e da professora Dra. Adriana Vianna. Não considero possível, desta maneira, compreender essa prática de liberdade desvinculada do fato de que ela acontece em estabelecimentos públicos e por parte de funcionários públicos, agentes e serviços pautados por um mandato social, qual seja: de tutela, de proteção, de construção de uma autoridade para cuidar e controlar o outro, do que o professor Antonio Lima chama de formas de gestão da alteridade e a professora Adriana Vianna designa captura de relações domésticas. Assim, as formas de gestão da loucura no espaço urbano e doméstico, como há pouco disse, giram em torno do confinamento asilar, da convivência nos CAPS e do cárcere privado, sendo que surgem novas formas de gestão além da já condenada internação prolongada descrita por Foucault e, mesmo, do temido controle a céu aberto descrito por Deleuze. Por exemplo, quando o parente do usuário de uma rede de atenção em saúde mental é convidado a permanecer com ele durante o período de internação, na função de acompanhante.
Nem totalmente isolado no espaço asilar, nem totalmente mantido em casa, esse convite aponta para outra forma de gestão que convoca os que estão em volta do usuário para permanecer com ele em hospitais, muitas vezes encurtando o período de internação e facilitando o manejo adequado de situações de crise e também a ministração de medicamentos segundo os profissionais e gestores da RAISM. Essa forma de gestão da loucura tem continuidades e descontinuidades com outras também já descritas por mim em outro momento, como a mediação de conflitos e a referência do usuário, da família e da vizinhança ao serviço.
IHU On-Line – Sob quais aspectos o adoecimento mental do sujeito reflete, também, o tipo de sociedade na qual vive, capitalista e excludente, e o modelo de saúde/doença imposto?
Martinho Braga Batista e Silva – Gostaria de acentuar a contribuição de um autor fundamental nessa discussão, H. Becker. Trata-se de alguém que realizou estudos de sociologia do desvio. Em sua obra há uma guinada importante a ser destacada. Ele primeiro questiona o fato dos cientistas sociais de sua época, década de 1960 nos EUA, partirem de uma classificação dada por médicos e juristas para realizarem suas pesquisas, ou seja, partirem da categorização de uma pessoa como “doente mental” ou de um grupo como de “criminosos” para, daí, eleger qual seria seu objeto de pesquisa. Seu questionamento se dirige ao fato de que aqueles que produzem o rótulo de doente mental ou criminoso nunca são o objeto da pesquisa, muito menos o processo pelo qual esse rótulo é gerado, e menos ainda a situação social na qual rotuladores e rotulados são constituídos como tal.
Embora muito se tenha pesquisado sobre os ditos “empreendedores morais”/rotuladores depois desta chamada de H. Becker – basta ver os estudos sobre especialidades médicas no campo das ciências sociais –, nem sempre tem se dedicado a mesma atenção para a relação entre rotuladores e rotulados e, menos ainda, às próprias situações sociais nas quais as categorias de desvio são geradas. Um estudo desse tipo seria muito relevante no caso do crack, por exemplo. Eu procurei fazer isso no Caso Damião Ximenes, tratando-se como uma situação social tal como H. Becker compreende o conceito, uma situação social e um drama social imerso em acusações de desvio social – categorizando países como violadores de direitos humanos, por exemplo.
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