domingo, 13 de outubro de 2013

Gabriela Leite: contra preconceitos, a força da ironia

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Prostituta que ousou defender direitos de milhões de mulheres considerava-se feminista, rejeitava ortodoxias e zombou até o fim da própria doença
Entrevista publicada originalmente em agosto de 2012
Gabriela Leite, a mais destacada lutadora pelos direitos das prostitutas brasileiras, morreu ontem de câncer, no Rio de Janeiro. Paulistana e de família tradicional, ela abandonou, com 22 anos, os cursos de Filosofia e Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) para imergir, por opção, na chamada Boca do Lixo, antiga região de São Paulo de grande concentração de garotas de programas, na década de 1970.
Hoje [em agosto de 2012], aos 61 anos, ela rejeita o termo “ex-prostituta” em suas apresentações. E com razão, pois Gabriela está muito ativa no movimento de defesa dos direitos das prostitutas, tendo fundando, inclusive, uma ONG em 1992, a Davida. Uma das principais conquistas até agora foi a inclusão, em 2002, da ocupação “trabalhador do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), permitindo que prostitutas possam se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como autônomas, e garantir uma aposentadoria futura.
Autora do livro “Filha, mãe, avó e puta – A história de uma mulher que decidiu ser prostituta”, da editora Objetiva e que já foi transformada em peça teatral, Gabriela, que luta contra um câncer, acaba de ser uma das contempladas do Prêmio “Trip Transformadores 2012”. Foi uma homenagem ao fato de ter lançado, anos antes, a grife Daspu – uma provocação à luxuosa Daslu e, ao mesmo tempo, uma cooperativa de produção de roupas constituída por ex-prostitutas que não seguiram no mercado do sexo por conta da idade
A seguir, você confere trechos da entrevista concedida à Agência Jovem de Notícias durante o 9º Congresso Brasileiro de Prevenção às DST e Aids, que aconteceu em agosto, em São Paulo (SP).
Quais são as perspectivas da regulamentação da profissão? O deputado federal Jean Willys (PSOL-RJ) apresentou um projeto (PL 4211/2012) recentemente. Em que pé está?
Nós estamos juntos com o Jean Willys no projeto. Ainda não é o projeto que queremos, mas para passar agora tem que ser esse. Mas é difícil à beça, porque o Congresso está muito conservador. O projeto é a favor da casa de prostituição, desde que não tenha exploração do trabalho. Há uma nuance, porque a polícia pode chegar e dizer que a casa está explorando, mas não existe nada que especifique essa situação para contestar e ver se de fato houve a exploração. A questão é você saber onde tem exploração e onde não tem.
E qual é a definição da prostituição?
Nós somos a favor da prostituição como trabalho. Somos a favor do turismo sexual, mas contrárias ao tráfico de seres humanos e à exploração sexual de crianças e adolescentes. Outra coisa é a prostituta adulta fazer sexo com estrangeiros. Não há nenhum impedimento legal em relação a isso. Se ela pode ganhar dinheiro fazendo programa com brasileiro, porque não pode, fazendo programa com um italiano? O taxista ganha dinheiro com o estrangeiro, a rede hoteleira ganha dinheiro com o estrangeiro, todo mundo ganha dinheiro.
Como você vê o movimento das profissionais do sexo em nosso País em relação aos outros?
Somos um dos países com o movimento mais forte, porque temos representações em 32 cidades do Brasil e muitos países da Europa. Às vezes, há uma associação somente em uma cidade, geralmente na capital do País. Recentemente, em Calcutá, na Índia, ganhamos um troféu de movimento mais moderno do mundo.
E como vocês lidam com o preconceito da sociedade?
É sempre fazendo ironia, como aconteceu com a Daspu, que dá uma visibilidade imensa. Acabamos de sair na revista Gol Linhas Aéreas, distribuída em todos os aviões da companhia, com o título A puta que pariu um sonho. Olha que maravilha, todo mundo que viaja de avião está lendo essa manchete. E acho que isso é uma luta contra o preconceito e vale mais que uma passeata.
Você acha que um dia a sociedade vai respeitar a prostituta como profissional?
Essa é a minha luta maior e acho que a luta das minhas colegas. A gente tem que acreditar nisso. O estigma e o preconceito existem em vários pontos, na pessoa que vive com Aids, nos homossexuais, nas travestis… Eu agora estou com câncer e percebi que existe um estigma com isso também. As pessoas não vivem com o diferente e temos que lutar contra isso, sempre, fazendo ironia. Esses dias, no restaurante, encontrei uma pessoa que não via há anos e eu estava usando um turbante. Comia perto da fila, quando a vi e ela gritou de longe “tá diferente, africanizou?” e eu falei “não, cancerizei”. Ela ficou tão sem graça (risos)!
Às vezes, muitas feministas falam contra as prostitutas e as tratam como vítimas. Como é a relação do movimento das prostitutas com o movimento das feministas?
É péssima. Sempre foi assim e em todo o mundo. As feministas – as ortodoxas, pois eu me considero feminista –, acham que a gente é vitima dos homens, do machismo, e tudo isso é muito simplista. Mas já existe uma linha do feminismo mais jovem, que dialoga com a gente. Mas uma vez eu estava nos Estados Unidos para conhecer o movimento feminista Bra-Burning, que queimou os sutiãs (na década de 1960). Quando me apresentei, falei: “Meu nome é Gabriela Leite, sou prostituta, sou feminista do Rio de Janeiro, Brasil”. Aí a presidente do movimento falou: “Você não é feminista. Prostituta não é feminista”, e eu disse que sim, e ela disse que não era. Ficamos assim até alguém interromper a discussão.
Participaram Ingrid Evangelista, Luana Viegas, Rafael Stemberg, Ramonna Abreu, Reynaldo Gosmão e Vânia Correia

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Foucault, um pensador político

O anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso

Renato Janine Ribeiro
Michel Foucault foi um pensador de muitas faces. Nós, de filosofia, gostamos de puxá-lo para nosso lado, mas ele teve forte impacto no Direito, na História, na Literatura. Este dossiê tenta dar conta de sua variedade. Começarei enfatizando seu papel político. Foucault veio a representar, para muitos, o melhor do 1968 francês e mundial. Confrontemos esse intelectual público modelar dos anos 60 e 70 com o filósofo que teve igual peso nas décadas anteriores – Sartre.
Jean-Paul Sartre foi o paradigma do pensador político francês entre o fim da 2ª Guerra Mundial e as barricadas do desejo, como Olgaria Matos chamou os movimentos de 1968. O eixo de sua posição consistiu, quisesse ele ou não, numa relação de proximidade crítica com o Partido Comunista. Sartre sempre foi mais democrata que os comunistas. Mas o PC era o partido dos operários, o portador da esperança revolucionária e, numa época em que a França fez de tudo para impedir a liberdade em suas colônias, a única força organizada de peso a contestar o colonialismo. Não dava para ser contra o PC e defender a liberdade. Hoje, quando a direita triunfa e Raymond Aron é visto como um pensador da liberdade (contra o totalitarismo comunista), muitos esquecem que, naquela época, o liberalismo reprimia e massacrava os povos.
Sartre soube disso e por isso mesmo seu pensamento e sua ação políticos tiveram por referência o comunismo. Foi muito crítico em relação ao movimento, como se pode ler em sua peça As mãos sujas (1948), mas não podia deixar de tê-lo por aliado. Vai criticá-lo com toda a severidade em seu “O fantasma de Stalin”, escrito logo depois da repressão soviética à Hungria, em 1956, mas nem por isso renega seu “Os comunistas e a paz”, de 1953, que defendia o Partido contra a repressão burguesa. O intelectual progressista assim se faz um “companheiro de viagem”, como se dizia. O rompimento de Sartre com Merleau-Ponty, aliás, se deve a posições distintas de ambos em face do comunismo e dos soviéticos.
Resumindo, há em Sartre uma preocupação com o social macro. É a sociedade como um todo, o mundo mesmo como um todo, que deve defender-se do capitalismo e de suas chacinas. Contra a ordem do capital, uma organização do trabalho é necessária – o que o Partido Comunista realiza. Mas Foucault verá as coisas de outro modo. Há várias maneiras de explicar essa diferença. O mundo mudou. As esperanças depostas num comunismo revisto, democratizado, foram-se. Em 1968, Brejnev manda na União Soviética. Isso significa a estagnação. Seu arremate é a destruição da Primavera de Praga, naquele ano – e, com isso, o fim (por muitas décadas, e talvez para sempre) da aposta num socialismo com rosto humano. Não há mais como ser companheiro crítico dos comunistas. E 1968 também vê a decisão do PC Francês de não levar o movimento das ruas à revolução: ele contenta-se com aumentos salariais. Mas a ruptura com o modelo sartriano era anterior a essa data.
Naquela década, o rompimento chamou-se estruturalismo. Dizia-se, o que hoje se esqueceu, que Foucault era um dos grandes estruturalistas – isto é, que dava a primazia à estrutura inconsciente sobre a ação consciente, ao macro sobre o micro, aos condicionantes sobre o voluntarismo. Isso vale para As palavras e as coisas, que revolucionou a leitura da filosofia e do pensamento clássicos, mas que, sobretudo, negava a possibilidade de pensar a passagem de uma época à seguinte por suas contradições internas: da Renascença ao tempo clássico/barroco e deste ao moderno, não se poderia explicar a lógica da mudança histórica.
Era essa a derrota da sincronia para a diacronia, com um estudo mais acurado das solidariedades que mantêm determinado sistema, mas, também, uma descrença na possibilidade de ruptura a partir de contradições internas. Era, portanto, um golpe no marxismo, que é dialético justamente porque define o real pela contradição, que é o que efetua a passagem de uma etapa da História a outra.
Sartre, por sua vez, era um moralista, no melhor sentido do termo. Sua grande questão era a ética. Embora nunca tenha escrito seu prometido grande livro filosófico sobre ela, sua intervenção política e suas peças de teatro – que lhe permitiam viver sem precisar submeter-se ao establishment universitário – respiram questões éticas o tempo todo. Por isso lhe causava repulsa a idéia de que nossas ações estivessem subordinadas a um quadro inconsciente, a um condicionante estrutural.
Mas essa oposição Sartre/Foucault não perdura. Hoje ninguém pensa em Foucault como estruturalista; aliás, o termo fez água, sumiu. E os dois se indignaram com a atitude do PCF em 1968 – só que Sartre saiu dali para tentar criar um clone maoísta do PC, enquanto Foucault foi defender ações pulverizadas, em escala micro, que negavam já por princípio o modelo da grande ação que mudasse o mundo.
Ficou algo de patético no Sartre dos últimos anos, que tentava com grupúsculos reconstruir um PCF: a tragédia era que lhes faltava o único mérito do PC, o tamanho, e lhes sobravam os vícios, como a opção pela ditadura. Já a escolha foucaultiana (ou foucaldiana, como querem alguns) implicava desistir da mudança do mundo por uma ação certeira, mirando o foco do inimigo, que era o capital. Não se acreditava mais que esse tipo de ação fosse possível (os poderes eram múltiplos, “mil poderezinhos”) nem desejável (o foco no centro manteria o poder como tal, só mudando o seu detentor).
Mas houve uma alegria nessa política dos enfrentamentos locais. Queria-se, talvez, menos; os críticos de Foucault alegavam que ele não punha em xeque o capital, apenas seus sintomas; os foucaultianos respondiam que não, que o poder assim se percebia mais complexo do que uma leitura simplista (leia-se: marxista) mostrava. Era inegável um débito de Foucault, como de Deleuze e Clastres, seus contemporâneos, com o anarquismo. Foi possivelmente essa a primeira vez que o anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso.
Onde estava essa alegria de pensar, que aliás aproximou todos esses autores de Nietzsche? Estava na disposição a agir na esfera local, na prontidão a ler sinais do novo, na idéia de que o poder estava em toda a parte – e, por isso, numa presteza a agir. Vejamos Vigiar e punir, livro de 1975, publicado quase às pressas (dizia-se que ia sair um livro pirateando as idéias de Foucault e que ele se antecipou a isso). Pouco a ver com o impacto d’As palavras e as coisas, que foi de 1967. As palavras falavam em quadros que condicionavam nosso pensamento e tornavam difícil o advento do novo. Vigiar tratava da ação, mais que do pensamento, e – se mostrava o peso do mundo disciplinar, se lia a modernidade a partir dos jesuítas e de sua imposição de uma ordem, barrando um agir livre – inspirava a cada página uma revolta, que se daria no plano da ação, mesmo que essa não fosse muito raciocinada, mesmo que (ou porque) ela prescindisse da macroteoria, da dialética, do marxismo.
Um balanço? Foucault foi muito criticado porque, na passagem de 1978 para 79, se entusiasmou por Khomeini. Não viu a teocracia que despontava em seu discurso; acreditou que a mobilização de massas a partir de uma fala não-ocidental constituía um fato novo e auspicioso. O erro foi grande, mas de quase nenhum efeito prático. Lembro um pensador de base marxista, condenando Foucault por lhe faltar uma base filosófica forte (leia-se: o marxismo) que o impedisse de erro tão banal. Mas lembro também que, ao contrário do comunismo, que teve seus gulags, o erro de Foucault não levou ninguém para o matadouro. Seu papel na Revolução Islâmica foi quase nulo, o de um mero simpatizante escrevendo para o Nouvel Observateur artigos que deram errado.
Em que pese esse erro, resta algo forte da política de Foucault. Penso que a prova dos nove, na filosofia política, reside na capacidade de inspirar o agir. O marxismo hoje inspira pouco o novo. Mas Foucault chama a agir, ainda que pontualmente. É curioso: a frase que motivou o Sartre derradeiro, “Sempre temos razão em nos revoltarmos”, poderia valer para ele, desde que reduzíssemos o peso da palavra razão, que fôssemos um pouco céticos diante dela…

O direito na política moderna

por sergio adorno

O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa

São bastante conhecidas as objeções de Foucault ao tratamento que a teoria política moderna atribuiu às relações entre direito e poder. Foucault recusa-se a aceitar a hegemonia que o modelo jurídico-político, herdeiro das tradições “jusnaturalistas” e contratualistas, centrado na idéia de soberania e no primado da lei, conquistou no interior do pensamento político, quer clássico, quer contemporâneo. À ficção jurídica do contrato, cuja substância se encarna na figura do príncipe pacificador, Foucault opôs uma mecânica de poder que opera sob a forma de infradireito (Foucault [1975] 1977a; [1976] 1977b; 1994, v. II-IV; [1976] 1999). Em Vigiar e punir (1977), Foucault reconhece que o século 19 elegeu a delinqüência como uma das engrenagens do poder e identificou a prisão como seu observatório político. Esse momento corresponde à emergência de uma nova mecânica de poder, que não diz mais respeito exclusivamente à lei e à repressão, mas que dispõe de uma riqueza estratégica porque investe sobre o corpo humano, não para supliciá-lo, contudo para adestrá-lo; não para expulsá-lo do convívio social, senão para explorar-lhe o máximo de suas potencialidades, tornando-o politicamente produtivo e economicamente dócil. Disso resulta que a disciplina não é uma estratégia de sujeição política exclusivamente repressiva, todavia positiva: o poder é produtor da individualidade, o indivíduo é uma produção do poder. Trata-se de uma forma de poder que se opõe ao modelo da soberania.
Essas conhecidas formulações de Foucault não conduzem, entretanto, a uma teoria geral do direito sob a égide do poder disciplinar. François Ewald (1993) sustenta que o direito, em Foucault, é antes de tudo um princípio de racionalidade que cabe percorrer em sua plenitude. Enquanto tal, impõe-se reconstruir sua história (afinal, o direito tem uma história?), o que significa, primeiramente, suspender a idéia mesma de direito, isto é, de um conjunto de regras universais e abstratas que circunscrevem o poder e o Estado.
No mais rigoroso nominalismo, Foucault decreta: o direito não existe; o que existe são práticas jurídicas referidas a um princípio de racionalidade – o do juízo, em lugar da coerção. É esse princípio que ordena as práticas legislativas, as doutrinas, a jurisprudência, a aplicação e distribuição da justiça.
Trata-se de um princípio atravessado pela história. Na história ocidental moderna, o juízo revestiu-se de legalidade. O direito enuncia-se sob a forma da lei inscrita nos códigos. Sob essa perspectiva, uma crítica arqueológica e genealógica do direito requer liberá-lo desse revestimento. É justamente o que faz Foucault em Vigiar e punir, em especial nas páginas consagradas ao exame da reforma iluminista da legislação penal verificada na França no período pós-revolucionário.
Em estudo recente, Fonseca (2002) aprofunda o lugar do direito no pensamento de Foucault. O direito define-se por seus usos. Fonseca reconhece ao menos três. O primeiro faz justamente referência ao direito como lei, imerso na arquitetura jurídico-política da soberania. O segundo compreende a extraordinária démarche em torno do poder disciplinar, magistralmente descrita na terceira parte de Vigiar e punir, seguida de seus ensaios, cursos e do 1o volume de História da sexualidade. Por fim, o terceiro uso introduz uma inovação: o apelo a um novo direito que percorre as entrelinhas de sua reflexão sobre a crise contemporânea das disciplinas (Foucault, 1994, v. III), a emergência de novos ilegalismos ([1975], 1977), em especial em seus cursos no Collège de France de 1975-76, “Em defesa da sociedade” (1999), e de 1978-79, “O nascimento da biopolítica” (1989), em parte dedicado à análise do liberalismo e do neo-liberalismo alemão e americano.
Esse terceiro uso é anunciado nos seguintes termos: “E creio que nos encontramos aqui numa espécie de ponto de estrangulamento: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar. De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Não é na direção do antigo direito de soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania” (1999, p. 47).
Um direito finalmente liberto do princípio da legalidade? Estamos diante da emergência de um novo princípio de juízo? O curso “Em defesa da sociedade” é devotado ao estudo das relações entre guerra e poder. Ao contrário do que sustenta certa tradição do pensamento ocidental, a emergência do mundo moderno não é por excelência o reino da paz sobre a guerra, nem a política é, como sonhava Clau-sewitz, a guerra pacificada sob outros meios. Examinando detidamente textos de historiadores contemporâneos dos processos revolucionários na Inglaterra e na França, Foucault reconhece que “a ordem civil é funda-mentalmente uma ordem de batalha”. A política é a continuação da guerra por outros meios. De que guerra se trata? A guerra das raças.
Na tradição clássica que adentra a Idade Média, o discurso histórico tinha por função justificar e fortalecer o poder. Seus fundamentos repousavam sobre três eixos: antiguidade dos reinos e conseqüente ancianidade do direito; glorificação dos reis e príncipes e de seus antecedentes; memorização dos feitos heróicos. A glória é feita lei.
A nova história, inaugurada com a emergência do mundo moderno, produz acentuada ruptura: em lugar do discurso histórico das virtudes da soberania, emerge o discurso das raças por meio das guerras entre nações, o que fez diluir a tradicional identidade entre povo e monarca. Daí em diante, a soberania terá precípua função: não mais o que une, porém o que subjuga.  A história de uns não é mais a história de todos. A lei vai aparecer como dupla face: “Triunfo de uns, submissão de outros”.
Assim, “o papel da história será o de mostrar que as leis enganam, que os reis se mascaram, que o poder ilude e que os historiadores mentem” (1999, p. 84). A nova história será, nessa medida, uma anti-história tendo em vista que desenterra o que parecia escondido nas saliências da memória: os reis, os poderosos, as leis nasceram justamente do acaso e da injustiça das batalhas. Trata-se, portanto, de uma história que reivindica direitos ignorados, a decifração de uma verdade selada pela dissimetria das raças e de seu contínuo enfrentamento bélico.
O desfecho desse processo, em fins do século 18 e meados do 19, encorajado pelos saberes médicos e biológicos, converterá a guerra das raças em racismo, de que se nutrirão todos os profetismos revolucionários que se seguem. Esse é justamente o momento do nascimento da biopolítica, a partir do que a questão da vida é problematizada no campo do pensamento político. Seus fundamentos repousam em dois eixos: nos séculos 17 e 18, emergem e se consolidam as técnicas de poder disciplinar em torno do corpo individualizado; na segunda metade do século 18, uma nova tecnologia ganha materialidade. Ela não exclui as técnicas disciplinares, antes as recobre. Dirige-se à multiplicidade dos homens, não enquanto portadores de corpos individualizados, todavia como massa global, afetada por processos coletivos como o nascimento, a morte, a produção, a doença. Suas técnicas residem na medição estatística de fenômenos demográficos. Seu alvo é a população como problema político e de gerenciamento estatal. Seu escopo não é o nascimento em si, porém a natalidade; não a morte, contudo a morbidade e a mortalidade.
Uma inovação dessa ordem inverte o clássico direito de soberania, o de mandar matar ou deixar viver, que se expressava na grande ritualização pública da morte. Com a invenção da biopolítica, um novo direito emerge: o de fazer viver e – em seu limite extremo – deixar morrer. Sob essa perspectiva, o direito é uma possibilidade, um mecanismo de regulamentação. Seu paradoxo é que, na era contemporânea, tenha-se tornando excessivo, numa espécie de superpoder ou supradireito. A estatização cada vez maior do direito à vida introduz uma possibilidade perturbadora: não só a da incessante fabricação da vida e dos viventes como também a fabricação de algo monstruoso, a possibilidade de sua eliminação sem controle por meio da disseminação de vírus, das armas químicas, da guerra sem interditos morais contra “as outras raças”.
O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que se é membro de uma população ou de uma raça. “Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu poder soberano” (1999, p. 309). Nesse cenário, no qual repúblicas parlamentares se inclinam muito rapidamente a Estados totalitários, se assiste paradoxalmente ao retorno do velho direito soberano de matar para se deixar viver.
Sergio Adornoprofessor do Departamento de Sociologia (FFLCH-USP) e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV–CEPID/USP
Referências bibliográficas
Ewald, F. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja. 1993.
Fonseca, M. A. Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad. 2002.
Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. (1975) 1977.
Foucault, M. “A vontade de saber”. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal. (1976) 1977.
Foucault, M. Resume des cours, 1970-1982. Paris: Julliard. 1989.
Foucault, M. Dits et ecrits. v. II-IV. Paris: Gallimard. 1994.
Foucault, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. (1975-76) 1999.

A palavra insensata

por eliane robert moraes

Para além de uma expressão estética, a literatura aparece para Foucault como o terreno privilegiado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento

Pouco antes de sua morte, em 1984, Michel Foucault publicou um texto notável, no qual interroga as qualidades de certos espaços que nos cercam. Para além dos locais empíricos,e bem como das utopias – que são posicionamentos fora da realidade –, ele destaca o que chama de “heterotopias”: lugares que, mesmo sendo localizáveis, se configuram como um lugar à parte, constituindo uma espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço em que vivemos. Cada heterotopia teria uma função no tecido social, que variaria entre pólos extremos: ora abrigando o desvio – como acontece com as prisões ou com os bordéis –, ora projetando os ideais de uma sociedade, como é o caso das bibliotecas ou dos museus.
A imagem mais bem acabada da heterotopia, porém, seria dada pelo barco. Como observa Foucault, o barco é um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao mesmo tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século 16 até os dias de hoje, não apenas como um importante instrumento do progresso econômico das sociedades, mas também como “a sua maior reserva de imaginação”. Nas civilizações sem barcos, conclui o autor, “os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a polícia, os corsários”.1?
Sonhos, aventuras, personagens fantasiosos – é digno de nota que o autor de As palavras e as coisastenha descrito o mais expressivo desses “outros espaços” por meio de elementos tão próprios à literatura. Aliás, o texto de Foucault sugere várias afinidades entre a escrita ficcional e as heterotopias: o que dizer, por exemplo, da função de “reserva de imaginação” atribuída aos barcos, que os aproxima definitivamente da escrita literária?
Com efeito, essa aproximação está longe de ser pontual, visto que ela retorna em diversas passagens da obra foucaltiana. A começar por sua insistente afirmação da espacialidade da linguagem, desenvolvida na contracorrente das teorias que advogam sua relação primitiva com o tempo. Foucault disse e repetiu inúmeras vezes que a dimensão temporal descreve apenas uma função da sintaxe, mas não o seu ser: “o que permite a um signo ser signo não é o tempo, mas o espaço”. Ou, em resumo: “a linguagem é espaço”.2?
Para justificar afirmativas tão categóricas, o autor lança mão de uma série de aspectos estruturais da linguagem, no empenho de confirmá-la como um sistema de signos que obedece a exigências sincrônicas, simultâneas, arquitetônicas e, por conseguinte, espaciais. Esse seria, se quisermos, o núcleo mais duro de seu pensamento sobre o tema, configurando concepções que por vezes chegam a resvalar em certo dogmatismo. Vale lembrar, contudo, que tal vertente de inspiração francamente estruturalista não esgota a formidável rede de relações entre espaço e literatura que ele explora com particular vigor.
Prova disso se encontra em vários textos seus, em especial os dedicados à moderna ficção européia, quase todos escritos nos anos 60. Num artigo consagrado a Maurice Blanchot, por exemplo, o autor toma um ponto de partida já fortemente marcado pela noção de espacialidade para definir a literatura como “a linguagem se colocando o mais distante possível dela mesma”.3? Trata-se, portanto, de uma definição tópica, que supõe um deslocamento essencial no modo de ser da linguagem, em paralelo a um novo tipo de experiência discursiva que surge a partir do século 19.
Experiência fundamentalmente negativa, completa Foucault, já que ela atenta sem cessar ao efeito de desrealização que repousa no horizonte de todo enunciado. Alheia a esse efeito, a fala cotidiana toma palavras e coisas como equivalentes, na crença de que a simples evocação do nome pode restituir a presença do ser. Se essa crença também está na base de toda estética da representação, é precisamente a ela que a literatura moderna vai dar as costas, ao postular a irrealidade como sua própria razão de ser. Daí sua inquietude, sua instabilidade, mas também seu poder e sua liberdade. Daí, principalmente, a sua insensatez.
Foucault vai eleger a obra de Blanchot como expressão exemplar desse discurso insensato, atentando para a prática da ausência que se trama em seus escritos. Com efeito, para o autor de A parte do fogo, a linguagem sempre impõe um recuo inevitável diante da existência: “Eu me nomeio, e é como se eu pronunciasse meu canto fúnebre: eu me separo de mim mesmo, não sou mais a minha presença nem minha realidade, mas uma presença objetiva, impessoal, a do meu nome, que me ultrapassa, e cuja imobilidade petrificada faz para mim exatamente o efeito de uma lápide, pesando sobre o vazio”.4?
A gravidade dessas palavras traduz o princípio trágico que, segundo Foucault, está na origem do discurso literário da modernidade: trata-se de convocar o ausente na condição de ausente, de tornar real sua presença fora dele mesmo e do mundo – enfim, de presentificá-lo em sua pura realidade de linguagem. Por isso mesmo, essa experiência negativa que é a literatura torna-se inseparável da fundação de um lugar impessoal, inumano, irreal – voltado para “o puro exterior onde as palavras se desenrolam infinitamente”, como quer Foucault – e que coincide com o que Blanchot chamou de “espaço literário”.
Ora, com tais considerações em mente, não seria pertinente uma aproximação entre o espaço fundado pela literatura e a heterotopia, cada qual configurando um lugar à parte no interior de um sistema? Afinal, como entender a aventura sensível de escritores como Roussel, Klossowski, Bataille ou Blanchot senão como formas possíveis de habitar esse “outro lugar” – ou esse outro modo de discurso que o autor de História da loucura define como “experiência radical da linguagem”?
Uma tal experiência implica necessariamente deslocamentos, transposições de bordas, passagens aos limiares. Ou, a exemplo do que Foucault propôs sobre Beckett, essas escritas estão sempre procurando ultrapassar os limites de sua própria regularidade. Por certo, não é difícil reconhecer tais atributos nas obras dos autores acima citados, aos quais poderíamos acrescentar ainda os nomes de Sade, Nietzsche, Nerval, Hölderlin ou Artaud, que estão entre os mais visitados nas análises foucaultianas. Não é difícil reconhecer tampouco as profundas afinidades que as experiências literárias levadas a cabo por esses artistas têm com outro tema fundamental para Foucault: a loucura.
Ao levar a linguagem ao extremo, expondo os confins da razão, esses escritores deixam a descoberto a ausência de sentido que torna possível todo sentido, selando uma aliança definitiva entre a palavra e a loucura. Dessa forma, em vez de subordinar a fala do louco à linguagem racional, como propõe a psiquiatria, a ficção moderna lhe dá uma voz, conferindo à sua experiência insensata uma profundidade e um poder que até então lhe haviam sido terminantemente recusados.
Mais que revelar o louco, porém, essa voz mostra que o discurso literário autêntico exige o risco da proximidade com a loucura. Como afirma Foucault ao analisar um livro de Bataille, cabe à ficção – enquanto expressão de uma experiência de linguagem –, “dizer o que não pode ser dito”.5? Para tanto, ela se impõe a difícil tarefa de reinstaurar o diálogo entre a razão e a desrazão, na tentativa de encontrar entre ambas uma linguagem comum que possa expressar, no limiar do possível, a experiência trágica do homem moderno.
Para além de uma expressão estética, portanto, a literatura aparece para Foucault como o terreno privile-giado em que se efetua uma experiência extrema de pensamento. Abertura para a loucura, por certo, que supõe a ousadia de flutuar sobre o sentido, de acolher significados provisórios, de reinventar palavras – em suma, de habitar um espaço sem se fixar num lugar. Os escritores que se abandonaram a essa aventura não estavam, decididamente, em terra firme.
Impossível não recordar aqui a heterotopia do barco, espaço flutuante lançado ao infinito do mar, que também propõe uma imagem perfeita para esse lugar outro, onde a imaginação literária se deixa flutuar. E talvez seja difícil não associá-la igualmente àquela “nau dos insensatos” que Foucault evoca diversas vezes em História da loucura: um barco carregado de loucos, navegando à deriva e excedendo os horizontes da compreensão.
Eliane Robert Moraescrítica literária, professora de Estética e Literatura na PUC-SP e autora, dentre outros, dos livros Sade – A felicidade libertina (Imago) e O corpo impossível (Iluminuras/Fapesp)

Um resistente nos Estados Unidos

por joãocamillo penna

Em seu último momento, ele se interessa por um novo tipo de luta social, por formas de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram da experiência da cultura gay em San Francisco

A presença de Michel Foucault nos Estados Unidos é significativa. Ela é sensível das formas mais diversas: em órgãos específicos de difusão da pesquisa acadêmica na crítica literária, em revistas como Social Text (primeiro número: inverno de 1979, gerida principalmente por Fredric Jameson, de abordagem marxista), Representations (primeiro número: fevereiro de 1983, órgão do Novo Historicismo) ou Cultural Critique (primeiro número: 1985), mas também na antropologia (Paul Rabinow, por exemplo), na história da ciência e da tecnologia (Donna Haraway) ou ainda em campos da política, como o movimento carcerário ou antipsiquiátrico, para mencionar só algumas áreas. É preciso, no entanto, cautela ao falar de Foucault nos Estados Unidos. Cinco razões principais para isso.
Primeira, a profunda inadequação da noção de “influência”, cuja fraqueza epistemológica é tema interno à própria obra de Foucault, que via a leitura causal dos fenômenos de semelhança e repetição como um suporte mágico inadequado. Assim, não se pode falar de “influência” da História da loucura sobre o movimento antipsiquiátrico nos Estados Unidos e na Inglaterra, já que um é em larga medida contemporâneo do outro – embora seja verdade que há muito de Foucault em A manufatura da loucura de Thomas Szasz (1970). Além disso, a relação entre Foucault e seus leitores americanos não é sempre amistosa, sendo freqüentemente marcada por uma ambigüidade crítica rigorosa, que precisa arrancar a Foucault um campo aberto por sua reflexão (caso de algumas apropriações como a dos Estudos de gênero ou a dos Estudos subalternos).
Segunda, não é evidente que as apropriações de Foucault nos Estados Unidos sejam homogêneas ao sentido original de seus projetos na França, embora a hipótese da existência de dois Foucaults, um Foucault americano e outro francês, como escreveu Vincent Descombes, seja algo excessiva. É inegável, portanto, que a inserção de Foucault no que se convencionou chamar “ontologias do múltiplo” (com Deleuze, Derrida, Lyotard…), i.e., a tradução filosófica francesa da política de maio de 1968, tem pouco a ver com o debate multiculturalista e a discussão sobre políticas identitárias americanas, momento mais fecundo da recepção foucaultiana nos Estados Unidos, nos anos oitenta. Embora não seja menos verdade que a crítica da subordinação do pensamento ao sujeito e ao Um, e uma idêntica afirmação da multiplicidade, lida em termos culturais ou identitários nos Estados Unidos, perpasse tanto uma quanto a outra.
Terceira, a articulação do debate foucaultiano nos Estados Unidos se dá no contexto da grande importação do pensamento francês nesse país, em que Foucault está longe de ser um caso isolado, sendo lido em conjunto com Derrida, Deleuze, Bourdieu, os historiadores das mentalidades, ou, um pouco antes, com Althusser, Lacan e Barthes, pensadores bastante heterogêneos entre si.
Quarta, a academia americana dialoga com aspectos distintos da obra foucaultiana, ela própria marcada por cortes profundos. É o caso das discussões no campo da filosofia e das ciências sociais sobre as ciências humanas ou da “virada interpretativa” (lingüística ou culturalista), marcada por uma crítica hermenêutica ao positivismo científico. É algo como o conceito de epistéme que será retomado, podendo ser “culturalizado” ou não, para querer dizer algo como uma “rede de significações tecida” pelo ser humano, conforme a definição de cultura formulada por Clifford Geertz (citando Max Weber), enquanto as apropriações mais recentes (Estudos pós-coloniais, Estudos de gênero, Queer Theory) se fixarão, como veremos, na História da sexualidade ou em Vigiar e punir.
Acresce-se a isso, finalmente, que o “último” Foucault será marcado por suas freqüentes visitas aos Estados Unidos, como professor convidado e conferencista. A partir delas ele se interessará por um novo tipo de luta social, por modo de resistência e por novas formas comunitárias, que lhe vieram em particular da experiência da cultura gay em San Francisco. Além disso, o fato inédito de que a apresentação sistemática de algumas de suas últimas colocações não só aparecerá antes nos Estados Unidos do que na França, como será incluída no interior de uma poderosa reflexão e tradução americana de sua obra, o livro de Paul Rabinow e Hubert Dreyfus (ambos professores na Universidade da Califórnia, em Berkeley), Michel Foucault, uma trajetória filosófica (de 1982 e 1983).
O caminho a tomar deve ser, portanto, outro: há um gesto foucaultiano claramente reconhecível em suas apropriações americanas. Esse gesto tem dois lados: o seu construtivismo radical e um estilo de ativismo que chamarei, precariamente, de nietzschiano. A marca foucaultiana aparecerá de forma nítida no mercado editorial americano sob o traço reconhecível em títulos contendo as palavras mágicas: a invenção de, a construção de, o nascimento de…
Mas como entender o construtivismo de Foucault? Ele é claramente definido na Arqueologia do saber: substituir uma interrogação sobre o conteúdo secreto da loucura pelo mapeamento da constituição da doença mental por meio do conjunto de enunciados que a nomeiam, recortam, explicam, julgam e, finalmente falam pela loucura (“articulando, em seu nome, discursos que deviam passar por seus”). Substituir a discussão sobre as coisas (sobre a referência) pela discussão sobre a formação de objetos no interior do discurso, o conjunto de regras que permite que a criminalidade, por exemplo, possa ter-se tornado objeto de parecer médico, ou que a loucura possa tornar-se objeto de parecer psiquiátrico.
É precisamente a noção foucaultiana de “discurso” que interessará, por exemplo, a Edward Said, em O Orientalismo (1978), livro que funda sozinho o campo inteiro dos Estudos coloniais e pós-coloniais na Academia Norte-americana. “Orientalismo”, explica Said, nas páginas iniciais de seu livro, é a “enorme e sistemática disciplina por meio da qual a cultura européia conseguiu administrar – e até produzir – politicamente, sociologicamente, militarmente, ideologicamente, cientificamente e imaginariamente, o Oriente, durante o período pós-iluminista”. Reconhecemos os termos das análises clássicas do Foucault de Vigiar e punir: a disciplina, em seu duplo sentido de saber/poder, que constitui, fabrica, ou produz o objeto Oriente, para dominá-lo ou controlá-lo. Eis o gesto foucaultiano, na verdade uma tradução do tema transcendental (kantiano): estudar a constituição do Oriente enquanto objeto discursivo, que não pode ser confundido com a cultura própria dos países do Oriente Médio, consiste em examinar as condições de seu aparecimento como construção ocidental enquanto objeto a ser dominado e outro simétrico inverso do Ocidente.
Mas é sobretudo enquanto produtor de subjetividades que o disciplinamento do binômio saber/poder contribuirá ao debate identitário americano. São os temas propostos em Vigiar e punir e A vontade de saber, respectivamente, do “exame” (criminológico ou psiquiátrico) e da “confissão”, por um lado, que vão colocar o problema da enunciação em primeiro plano. Foucault explica que a criação mais fecunda do sistema penitenciário não é a “detenção privativa da liberdade”, mas a criação do personagem do delinqüente que suplementa a prisão e duplica o delito. Em A vontade de saber, por outro lado, delineia-se a polêmica proposição sobre a construção da sexualidade como categoria científica-política-social, produzindo-a (a matriz é sempre a da fabricação industrial) a partir das proibições e regulamentações de comportamentos que eram suspeitos de reprimi-la. A “tecnologia” ou o “dispositivo” sexual consiste no conjunto de técnicas concebidas com o intuito de maximizar a vida no bojo de um novo poder no século 19, o biopoder, constituindo quatro objetos e suas respectivas ciências: a sexualidade infantil (a pedagogia), a sexualidade feminina (como especialização da medicina), o controle da procriação (a demografia) e a perversão (como campo da psiquiatria).
Embora a palavra “identidade” não apareça nestes textos de Foucault, é a tradução dos personagens por identidades que se mostrará extremamente profícua para o debate americano. A objetivação/subjetivação da mulher como ser sexuado, por exemplo, é sua identidade constituída pelo saber/poder, forma aprisionada e limitada, determinada por aparelhos complexos de controle. Ao mesmo tempo é a forma possível com a qual pode contar qualquer movimento identitário de mulheres que pretenda se libertar dessa forma aprisionada. Double-bind terrível e inescapável com o qual os Estudos de gênero deverão se confrontar (Teresa de Lauretis, por exemplo), que oporá um construtivismo radical (a identidade genérica é fabricada enquanto “personagem” do biopoder e é incapaz de dizer qualquer coisa de interessante sobre a mulher) a uma necessidade de recorrer, nem que seja estrategicamente, a uma quase-essência feminina como espaço comunitário político afirmativo e liberalizante da mulher, abrindo a possibilidade de constituição de um sujeito-mulher. Aqui, se juntam possivelmente as preocupações em torno do problema das “técnicas de si”, da transformação de si mesmo em sujeito, do último Foucault.
Um problema análogo coloca-se para os Estudos gays e lésbicos, que se reagruparão em seguida como Queer Theory. Enquanto antes do século 19, no direito canônico e civil, a sodomia era vista simplesmente como um ato proibido, a partir do século 19 – Foucault nos oferece a data de 1870 –, o homossexual torna-se um personagem, compreendido como um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida, uma morfologia, uma anatomia e uma fisiologia. A definição destas “sexualidades periféricas” no contexto da “implantação perversa” e da especificação dos indivíduos é a mesma da constituição de sexualidades ditas normais. Daí, o grande interesse dos Estudos de gênero (ou da Queer Theory) também pelas formas da masculinidade ou pela heterossexualidade vista como comportamento compulsório.
Dizer que a sexualidade é um efeito discursivo artificial (não-natural), um instrumento político-social e não uma positividade, uma realidade psicológica ou física não implica de maneira nenhuma dizer que ela seja pura e simplesmente discursiva, mas sim propor polemicamente um salutar antídoto a qualquer tentativa de fundamentar uma “teoria da sexualidade”. Novo double-bind identitário, mas cuja solução corajosa e arriscada poderia ser formulada da seguinte maneira: já que a sexualidade é pura fabricação do biopoder, por que não reinventar um modo corporal e de prazer que não seja o sexual, uma forma de experimentação coletiva e pessoal, que propusesse uma maneira nova e até agora desconhecida de relação com o corpo? David Halperin caminharia nesse sentido. É o tipo de ativismo nietzschiano de que falei no início.
João Camillo Pennaprofessor no Departamento de Ciência da Literatura, na UFRJ. Publicou, dentre outros, “Este corpo, esta dor, esta fome:  notas sobre o testemunho hispano-americano” in Seligmann-Silva, Márcio (Org.).História-Memória-Literatura. O testemunho na  era das catástrofes. São Paulo: Editora Unicamp, 2003, e organizou, com Virgínia Figueiredo, A imitação dos modernos, de Philippe Lacoue-Labarthe. São Paulo: Editora Paz e Terra, 2000

Foucault, um filósofo que pratica histórias

por salma tannus muchail

O pensamento de Foucault apresenta duas fortes marcas. Primeiro, a da atualidade; segundo, a da mobilidade

Foucault pensa filosoficamente praticando investigações históricas. Uma caracterização inicial e ampla de seus trabalhos permite evidenciar algumas escolhas: primeiro, o campo destas histórias é sempre o nosso espaço ocidental; segundo, o tempo que percorrem é quase sempre aquele que vai do final do renascimento (por volta do século 16) até a nossa modernidade (séculos 19 e 20), atravessando, com especial destaque, a chamada idade clássica (séculos 17 e 18); terceiro, o trajeto reconstruído neste espaço e neste tempo tem como principal perspectiva realçar as transformações demarcando dois limiares, a saber, as passagens do final do renascimento para a idade clássica e desta para a nossa modernidade.
Histórias circunscritas dentro de uma dada localização, no curso de determinados períodos e segundo certo ponto de vista, eis a moldura que cerca este quadro geral dos escritos de Foucault. Tentemos tracejar os temas contemplados no interior do quadro.
Por um lado, a um olhar mais imediato, desdobra-se uma diversidade de assuntos: a loucura e o louco, a medicina clínica e o doente, os saberes das chamadas ciências humanas, a prisão e o delinqüente, a sexualidade e o sujeito ético – eis os “objetos” vários das histórias que Foucault escreve. Por outro lado, um recuo do olhar permite uma percepção de conjunto por meio da qual se revelam certos eixos comuns atravessando a diversidade temática: a questão da constituição histórica de saberes em discursos qualificados como verdadeiros e a correlata desqualificação de outros (é o eixo da “verdade”); a vinculação entre a dimensão discursiva e a esfera extradiscursiva ou das práticas sociais com a conseqüente conexão entre a ordem da verdade e a dos regimes de poder (é o eixo do “poder”); a constituição do homem historicamente objetivado e subjetivado no plano do conhecimento em contraponto à constituição de si mesmo no plano da ética (é o eixo do “sujeito”), eis os “elos” que articulam aquela variedade de temáticas.
Neste traçado de caracterização muito geral das investigações, é interessante indicar o pro-pósito que as envolve. Sem dúvida, são estudos rigorosamente elaborados com informações minuciosas sobre os assuntos escolhidos, em sua variedade e em seus eixos, sem jamais des-locá-los de seus contextos, de suas épocas e de seus lugares. Contudo, não visam a um conhecimento erudito de sociedades passadas. O percurso daquele trajeto histórico pretende antes trazer à luz as disposições epistemológicas, políticas e éticas de nossa sociedade, fazer ver o nosso presente his—tó-rico, e fazê-lo ver com clareza tanto maior quanto melhor se puder alcançar a compreensão de nossa sociedade pela sua diferença com o que a precede.
É claro que um quadro geral como esse que buscamos esboçar só se deixa desenhar sob uma visão retrospectiva que abarca, como que a partir de seu “ponto de chegada”, todo o caminho já percorrido pela produção filosófico-histórica de Foucault. Quando a tomamos, porém, sob uma visão mais estritamente cronológica, constatamos que aqueles três eixos de articulação, embora sempre presentes, não são sempre igualmente simultâneos; descortina-se uma sucessiva predominância de cada um deles ao longo da produção de Foucault quando considerada desde seu “ponto de partida”. Isso permite configurar “fases” ou “etapas” na trajetória de seus escritos.
Assim, no decorrer desse percurso, os estudiosos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem uma repartição possível em três momentos. No primeiro, as publicações principais da década de 60, História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica – uma arqueologia do olhar médico (1963), As palavras e as coisas – uma arqueologia das ciências humanas (1966), A arqueologia do saber (1969). No segundo, os dois grandes livros da década de 70,Vigiar e punir – Nascimento da prisão (1975) e A vontade de saber – volume I de História da sexualidade (1976). O terceiro momento compreende os volumes II e III de História da sexualidade, intitulados O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984).
Embora esquemática e “relativizável”, essa distribuição encontra fundamento na predominância sucessiva de um ou outro daqueles três eixos articuladores: nas primeiras obras, o predomínio das preocupações com saberes considerados verdadeiros; nas obras do segundo momento, a acentuação dos vínculos entre verdade e poder; nas últimas, a dimensão ética na abordagem das relações consigo e com os outros. Essas etapas receberam denominações: arqueologia, genealogia e genealogia da ética. A esse conjunto, devem ser acrescentadas ainda duas situações ocorridas após a morte de Foucault (1984): a publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos, aulas etc., que Foucault realizara em diversos países) e, bem mais recentemente ainda, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no Collège de France entre os anos 70 e 84 (foram ministrados 13 cursos), cuja publicação iniciou-se em 1997 (foram publicados até o presente quatro cursos).
Para concluir, consideremos, resumidamente, alguns traços do pensamento foucaultiano remetendo-o, como o faz ele próprio, a Kant e principalmente a Nietzsche (sem falar em Heidegger, que ele freqüentemente também menciona). Em Kant, a retomada de um tipo de filosofia compreendida como atitude que problematiza nosso presente, que interroga a constituição de nosso modo histórico de ser. Em Nietzsche, a crítica ao olhar supra-histórico e a inclusão do olhar perspectivo.
A partir daí poderíamos dizer que o pensamento de Foucault apresenta duas fortes marcas. Primeiro, a da atualidade: esta é a marca de que falávamos no início e significa que, ao fazer filosofia investigando a história, o trabalho foucaultiano busca não apenas o conhecimento erudito das sociedades passadas, mas, antes, a melhor compreensão de nós mesmos pela confrontação com o que já não somos. Segundo, a da mobilidade: esta é a marca que complementa a primeira e significa que os escritos histórico-filosóficos de Foucault não só propiciam a compreensão de nossa sociedade historicamente situada na perspectiva da sua diferença com o que a precede, como também sugerem possibilidades de transformação no que ela pode vir a ser.
Salma Tannus MuchailProfessora titular de filosofia da PUC-SP

O domínio do politizável

por márcio alves da fonseca

Para Foucault, o poder é menos propriedade do que estratégia; não tem essência: é operatório

Michel Foucault alcança notoriedade intelectual, na França e no exterior, com a publicação de As Palavras e as coisas, em 1966. Por um lado, o horizonte teórico é então fortemente marcado pelo estruturalismo, pela psicanálise e pelo marxismo, destacando-se Lévi-Strauss, Lacan, Althusser, Barthes. Por outro lado, o pensamento e a militância política franceses têm em Sartre seu mais importante paradigma. A proximidade dele com o marxismo determina as categorias – dialética, dominação, repressão, ideologia – com as quais, naquele momento, se constrói a teoria e se fundamenta a prática política. É em face desse quadro teórico e no contexto do engajamento político que Foucault se situará e se afastará.
Em Foucault, o engajamento e a prática política não têm estatuto próprio, à parte da teoria. O engajamento político em Foucault só poderá ser compreendido se cotejado com a elaboração e os deslocamentos de seu pensamento. Já os primeiros livros (História da loucuraO Nascimento da clínica e As Palavras e as coisas), segundo distintos enfoques de uma “história arqueológica”, delineiam uma crítica à filosofia do sujeito, filosofia na qual o homem aparece como sede da verdade. Nos escritos da “arqueologia”, ao descrever os solos históricos que determinam o aparecimento e a organização dos saberes de uma época (como os saberes da psiquiatria, da medicina e das ciências humanas), Foucault distancia-se tanto de uma concepção da verdade como essência  quanto da categoria de um sujeito transcendental. A figura do homem que conhecemos é recente. Resulta de uma mudança nas disposições do saber, que cabe à arqueologia de nosso pensamento revelar (Foucault, M. As Palavras e as coisas, 1990, p. 404).
Assim, o engajamento político só fará sentido se não pretender indicar “a” verdade. Depende de reconhecer que a verdade não se situa fora do poder. Para Foucault, como para Nietzsche, a verdade é deste mundo, sendo produzida a partir de múltiplos constrangimentos (Foucault, M. La fonction politique de l’intellectuel, 1994, p. 112). O papel do intelectual não será expressar a “consciência de todos”, colocar-se à frente para dizer a muda verdade de todos (Foucault, M.; Deleuze, G., 1988, p. 71). O intelectual que atua no domínio do “universal” e do “exemplar” é substituído pela figura do intelectual que necessariamente ocupa uma posição específica. Sua atuação é local e regional. Seu engajamento, como qualquer engajamento político, apenas terá significado se não comportar uma pretensão totalizadora e puder atuar localmente no regime de “verdade/poder” em que estiver inserido.
Não há, portanto, engajamento político que prescinda de uma análise dos mecanismos de poder que atravessam a sociedade em que tal engajamento se dá. O engajamento político, em Foucault, deve ser considerado em seu “revezamento” com suas análises sobre o poder. O pensamento político de Michel Foucault se formula procedendo a deslocamentos. Um primeiro deslocamento afeta as concepções de poder que se apóiam exclusivamente em um modelo jurídico (que pergunta pela legitimidade do poder) ou em um modelo institucional (que pergunta pelo significado e pelo papel do Estado e de suas instituições). Busca tanto apontar os limites de uma concepção “ontológica” do poder quanto deslocar o foco das análises para as diversas modalidades de seu exercício. O poder é menos uma propriedade do que uma estratégia. Não tem essência: é operatório. Não atua exclusivamente por violência ou repressão: é produtor de gestos, atitudes e saberes.
Se o poder não tem substância, deve-se descrever o funcionamento de seus mecanismos. Quanto à época moderna (para Foucault, os séculos 19 e 20), esses mecanismos são descritos como mecanismos de normalização. Sua forma de atuação apóia-se nos procedimentos de distribuição espacial, fracionamento do tempo, controle das atividades e composição das forças individuais, cujo efeito é a padronização das ações dos indivíduos em suas diversas realizações. Esses procedimentos técnicos de normalização, que têm como ponto de inscrição privilegiado os “corpos” distribuídos nos espaços institucionais (como a escola, a fábrica, o hospital, a prisão), são denominados por Foucault de “disciplina”. Os mecanismos da disciplina atuam no nível capilar dos gestos individuais e seu funcionamento pode ser descrito segundo uma “microfísica”.
Se a novidade conceitual dessa leitura do poder permitiu apontar os limites de diferentes abordagens da teoria e da sociologia políticas (como o faz, por exemplo, Vigiar e Punir, relativamente às análises sociológicas das formas punitivas), ela também se viu confrontada com suas limitações. As críticas à concepção foucaultiana de poder disciplinar-normalizador questionavam sua deficiência em pôr em questão as formas gerais de dominação, como a constituída pelo capital. De que modo a percepção dos mecanismos das relações de forças infinitesimais permitiria considerar o problema da resistência? O engajamento político está restrito à ação pulverizada de indivíduos isolados ou pode também vir a ter sentido orgânico e coletivo?
Além da resposta mais imediata que afirma que “onde há poder, há resistência”, a inquietação que motiva essas críticas deverá ser cotejada com um segundo deslocamento ocorrido no interior da própria “analítica do poder” elaborada por Foucault. A partir do ano de 1976, com a publicação de A Vontade de saber (primeiro volume de sua História da sexualidade) e com o curso “Em defesa da sociedade”, proferido no Collège de France, as análises sobre os mecanismos da normalização disciplinar serão integradas no interior de uma rede de inteligibilidade mais ampla.
Estudando o biopoder, Foucault direciona sua abordagem para os dispositivos de normalização considerados enquanto “mecanismos de regulação” da vida. Nos procedimentos da biopolítica, não se trata apenas de distribuir, vigiar e adestrar os indivíduos dentro de espaços determinados, mas de dar conta dos fenômenos amplos da vida biológica. Trata-se de atuar sobre os fenômenos naturais que se manifestam numa determinada população. Esse é o domínio constituído pelo que Foucault chamará de “arte de governar”, entendida como a racionalidade política que determina a forma de gestão das condutas dos indivíduos de uma sociedade.
Na medida em que essa abordagem possa desfibrar uma racionalidade política, identificar sua gênese histórica e descrever seu funcionamento, também deverá abrir espaço para uma reflexão sobre as “contracondutas” possíveis.  No reverso das análises das governamentalidades políticas, se contém, de maneira indissociável, uma interrogação sobre as “crises de governamentalidade” (Foucault, 2004a, p. 70).
Nesses trabalhos do final dos anos 1970 e início dos anos 1980, há um forte apelo do pensamento político de Foucault às novas formas que podem assumir as modalidades de luta e de resistência. Elas terão a densidade de contracondutas individuais, mas também coletivas. Podem se configurar como as ações e os movimentos que se opõem às formas de condução das condutas no interior de uma racionalidade política.
 O engajamento, na perspectiva de Foucault, deve ser situado em referência a esse vasto domínio. Se não tem pretensão totalizadora nem assume forma exemplar, ele encontra-se aberto, em sua forma e conteúdo, ao amplo domínio do politizável.
Márcio Alves da Fonsecaé professor do Departamento de Filosofia da PUC-SP, autor de Michel Foucault e o Direito (Max Limonad) e Michel Foucault e a Constituição do Sujeito (Educ).

domingo, 6 de outubro de 2013

Dona Maria, os benditos e as almas

MARIA_EXPRESSIVA
Isolada com marido, a quatro quilômetros do ser humano mais próximo, última romeira habita pé-de-morro onde sua comunidade fervilhava, nos anos 1960 
Crônica de Ana Aranha, no blog 3 por 4
As pessoas insistem que o casal mude para a cidade. Afinal, não é prudente uma senhora e um senhor de 76 anos morarem sozinhos num lugar tão isolado. A elas, dona Maria explica: “Ninguém aqui tá só. Tamos acompanhados com Deus e as almas”.
Maria Mendes da Silva e Bento Benigo dos Santos são os últimos habitantes de uma comunidade de romeiros que se instalou ao pé de um morro no norte do Tocantins. Na década de sessenta, os devotos bateram o chão e ergueram cerca de cinquenta casas de pau a pique perto da trilha que leva ao morro, onde há duas igrejas. A vila dos romeiros, onde mais duas igrejas foram construídas, vivia embalada por cantos, batidas de tambor e badaladas dos sinos. Além dos moradores, muitos devotos vinham em romaria do Norte e do Nordeste.
Hoje, fora a casa de dona Maria e seu Bento, todas as outras estão vazias. Alguns moradores rumaram ao Norte, outros ficaram até o fim da vida e lá estão, enterrados sob o chão batido ao redor das igrejas. Quando dona Maria anda entre os muitos crucifixos – sempre com os pés descalços quando pisando no chão da vila – vai lembrando dos nomes e das histórias de quem viveu ali.
Mas, ao contrário do que pode parecer para nós, forasteiros, o lugar é cheio de vida. Uma vida que hoje quase não se vê. Dona Maria e seu Bento mantêm as tradições: batem o o sino da igreja, cantam os benditos e rezam as penitências todo sábado, domingo e segunda-feira – dias em que é proibido trabalhar. Às vezes, os rituais são acompanhados pela “familinha”, como ela chama os seis filhos, 24 netos e oito bisnetos que moram na cidade. Às vezes não. Mas o casal não se sente só. Dona Maria e seu Bento são convictos de que o falecido padrinho espiritual da comunidade Manuel Borges dos Santos está presente, olhando por eles e pelas almas da vila.
Manuel Borges era um influente líder religioso na região. Há quem diga que, não fosse sua morte precipitada por um acidente, o beato formaria uma comunidade similar à Canudos de Antônio Conselheiro.
Dona Maria enche os olhos quando fala do seu padinho. Assombra-se ao lembrar da capacidade dele em adivinhar o que os fiéis faziam. “Se tu namorasse com teu marido lá em Juazeiro do Norte e chegasse aqui pra pedir a benção, ele não pegava na sua mão. Fazia a cruz de longe. Ele sabia tudo, não era como esses homens que não sabem nada do nosso coração”.
Foi ele que cavou o buraco no topo do morro onde, até hoje, há água o ano todo, até nos períodos de seca. Dona Maria conta que a água é “de milagre” e já curou muita gente, como um de seus filhos que nasceu entrevado. Perto da fonte, fica uma cruz de madeira e uma Igreja, ambas cercadas por vista exuberante da caatinga e um vento redentor. Manuel Borges foi o único enterrado lá em cima, sua sepultura ornada por uma pequena capela.
A subida é íngreme sobre pedras lisas e sob o sol impiedoso do Tocantins – um teste de resistência para os seres sedentários da cidade. Na volta, dona Maria ri da minha cara vermelha e acode com água e almoço. Com mais que o dobro da minha idade e o triplo de músculos na perna, ela sobe o mesmo morro enquanto cantarola o bendito.
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No roteiro de dona Maria não há espaço para conversa pequena, qualquer assunto é caminho para as coisas grandes. Como quando perguntei onde ela nasceu. “Sou de Mirador, Maranhão”, respondeu, mas logo corrigiu a objetividade: “Nasci maranhense. Ainda não morri, nem tenho inveja de quem morreu, porque vou morrer também”.
Ela vive uma vida larga em histórias porque não limita seu aprendizado aos ensinamentos do dia. “Meu padinho falou que não há sonho perdido. Se você sonha um sonho ruim é porque seu espírito passou naquela ruindade e você ficou sabendo. Se foi uma coisa boa, é porque seu espírito encarnou naquela matéria e você ficou sabendo”.
Às vezes ela acorda mais sabida e o povo duvida, chamam suas ideias de “variaridades” – qualidade de quem está “variando”. Ela fica ofendida. Dona Maria não sabe ler ou escrever (nunca pisou numa escola), mas se orgulha da cabeça onde guarda com propriedade a história da sua vila e uma miríade de benditos e rezas que podem estender-se por horas.
Quando foi convidada pelo padre para rezar um dos benditos que só ela sabe, na igreja católica da cidade, as devotas se surpreenderam: “Você tem muita coragem, eu não dou conta de rezar sozinha um bendito desse tamanho”. Ao que dona Maria respondeu: “você não tem cabeça não, mulher?”.
A cidade de cinco mil habitantes, a cerca de 4 quilômetros da vila dos romeiros, foi oficialmente criada em 1989 com o título de Aragominas. Mas os moradores não reconhecem esse nome. Na região, todos chamam o local de “Pé do Morro”. As histórias de dona Maria podem parecer distantes do mundo em que a maioria das pessoas vive hoje, mas ela tem mais lastro de realidade do que a nomenclatura oficial inventada pelos governantes.
Para fechar a entrevista (ou a conversa, que é uma das palavras de que ela mais gosta), Dona Maria rezou um bendito e encerrou com as seguintes palavras: “Se vocês tiverem acreditando nessa conversa, vocês levam e conversam lá por onde andarem”.
Não travei conversa com as outras almas da vila dos romeiros, nem me tornei uma pessoa mais ou menos religiosa ao conhecer o local. Mas saí de lá carregando uma certeza: eu acredito em dona Maria. Se, daqui a algum tempo, as pessoas que conversam tanto pela “nuvem virtual” duvidarem que um ser tão especial pisou na terra, a prova está aqui. Registrada neste texto que termina com um convite para ouvir o bendito de “Nossa Senhora da Luz”, embalado pela única voz que sabe rezá-lo.

Por que é possível desmilitarizar PMs

Proposta ganha adeptos, inclusive na própria polícia. Militarização sugere existência de “inimigo” e de postura bélica — o que nada tem a ver com segurança pública 
Por Mauro Donato, no Diário do Centro do Mundo
O grito que anda presente nas ruas assusta leigos, que costumam reagir com a pergunta: “E na hora em que for assaltado, vou chamar quem?”, como se desmilitarizar significasse a extinção de policiamento ou da própria polícia. Não significa. Trata-se apenas de transferir esse “serviço” para uma polícia sem arquitetura militar.
Regida pelo artigo 144 da Constituição federal, a segurança pública destina à polícia civil apenas o poder de investigação e apuração de infrações penais (e levar os casos ao poder judiciário), ficando a cargo da polícia militar o policiamento ostensivo e “preservação da ordem pública”. Isso por si só já é problemático pois, evidentemente, uma polícia lava as mãos tão logo passa o bastão adiante.
Mas o ponto em questão é a cultura e a hierarquia às quais os militares são submetidos em seu treinamento, nos moldes das Forças Armadas. Militares são treinados e preparados para defender o país contra inimigos. É uma postura radicalmente diferente de quem vai lidar com o próprio povo. Nós não estamos em guerra. Sobretudo contra nós mesmos. E uma polícia “contra” o povo só faz sentido em ditaduras. Nós também não estamos em uma, estamos?
“A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo. O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o cidadão que eventualmente está cometendo um crime, não é um inimigo. É um cidadão que tem direitos e esses direitos tem de ser respeitados”, disse Túlio Vianna, professor de Direito Penal na UFMG durante uma aula pública realizada em julho, no vão do Masp. O professor condena ainda a existência do código penal próprio da PM, aplicado para policiais que cometem delitos: “É muito cômodo você ter uma justiça que te julga pelos próprios pares”.
O tema é espinhudo até entre PMs. Um coronel da PM do Rio Grande do Norte entrou com uma representação contra um tenente que se posicionou à favor da desmilitarização, num post em seu perfil no Facebook. Sinal dos tempos, a Associação dos Cabos e Soldados da PM/RN saiu em defesa do tenente: “O Tenente Silva Neto teve o privilégio de em sua carreira militar ter sido soldado e, por isso, tem uma visão ampla dessa questão do militarismo e de suas implicações, hierarquizada na nossa corporação, (…) Por tudo aduzido acima, a Associação dos Cabos e Soldados expressa a sua mais sincera admiração pelo tenente Silva Neto, além de disponibilizar o núcleo jurídico da nossa entidade a fim de ofertar defesa frente à representação apresentada pelo Coronel PM WALTERLER”.
A hierarquia militar é propícia a abusos. Carlos Alberto Da Silva Mello é cabo da polícia em Minas Gerais e favorável à desmilitarização e postou no portal EBC (Empresa Brasil de Comunicação): “Bom dia, sou PM e vejo na desmilitarização o avanço da segurança pública no nosso país. Os coronéis são contra porque eles perderiam o poder ditatorial, acabaria os abusos de autoridade contra os praças, acabaria o corporativismo que existe nas PMs (…) Fim do militarismo, não o fim das polícias e sim (o fim) de um regime autoritário, desumano, arrogante, (…) A sociedade não toma conhecimento do que se passa dentro da PM. Todo cabo, soldado e sargentos são a favor da desmilitarização das PMs. O militarismo é o retrocesso (…) os abusos são constantes dentro dos cursos de formação de soldados.”
O ranço bélico que existe na PM está em superexposição desde junho. A falta de critérios para utilização de armas “não letais”, a gratuidade da violência, a truculência figadal, as táticas de emboscada. A atitude de colocar a tropa de choque, bombas de gás e balas de borracha ao lado de manifestantes já incita a tensão por seu caráter repressor. Em todas as ocasiões em que o exibicionismo da força militar esteve ausente, não houve bagunça, baderna, vandalismo, chamem como quiserem. Não é coincidência. Somado a atitudes autoritárias (e ilegais) como a detenção “para averiguação” que vem ocorrendo sistematicamente, temos um quadro que exige a revisão desse artigo 144 urgentemente.
O que se deseja nem é o desarmamento. Embora Londres possa sempre ser lembrada como exemplo de polícia desarmada, não fechemos os olhos em busca de utopia (mas há dados interessantes a se saber com relação a isso e que podem alimentar sonhos: uma pesquisa interna feita com os policiais britânicos, 82% deles disseram que não queriam passar a portar arma de fogo em serviço, mesmo quando cerca de 50% dos mesmos policiais disseram ter passado por situações que consideraram de “sério risco” nos 3 anos anteriores à pesquisa).
O que se deseja são uma ouvidoria e uma corregedoria minimamente eficientes e atuantes, de modo a pelo menos inibir declarações surreais como o já famoso “Fiz porque quis” proferida por um BOPE em Brasília, ou um alucinado policial sem identificação insultando diversos advogados no meio da rua, ou o sargento Alberto do Choque do RJ que ontem respondeu com um “Não te interessa” ao questionamento da falta de identificação, todos convictos da inconsequência de seus atos (se você não é do Rio de Janeiro, aconselho que acompanhe de perto o que tem se passado lá todas as noites).
É evidente que isso veio à tona desde que os filhos da classe média passaram a ser as vítimas. Na periferia é ancestral e sempre foi ignorado ou menosprezado. Portanto que se aproveite o momento. Os benefícios de uma polícia não militarizada refletiria em toda a sociedade.
Um dos caminhos seria a unificação das policias civil e militar, algo possível apenas através de uma emenda à constituição. Isso não se consegue da noite para o dia, portanto, quanto antes se começar a mexer nesse vespeiro, mais cedo teremos algum avanço. O que não é possível é ficar assistindo reintegrações de posse se tornarem espetáculos de carnificina com requintes de crueldade como vemos hoje. Já deu.

flecheira.libertária.312

desde o chile, o autoritarismo segue
As marcas de uma ditadura são imediatamente visíveis. Como no Brasil, os policiais pelas ruas de Santiago, no Chile, fazem-nos sentir como se estivéssemos em um país ocupado por forças militares. Essa semana dois conhecidos torturadores foram transferidos de uma prisão para outra. Houve protestos e intensa cobertura da imprensa. Dizem ser uma questão de justiça, pois os presos gozavam de regalias em uma prisão que, segundo certos chilenos, mais parecia um hotel 5 estrelas. A prisão dos torturadores e os reclames por justiça confirmam o autoritarismo que segue na democracia. As regalias aos condenados torturadores, apenas confirmam a seletividade penal. Para que cesse o autoritarismo, deveriam ao invés de prender os torturadores, cerrar de vez as prisões.
política das ruas
As ruas em Santiago exibem muros pichados com uma série de protestos contra a polícia e o governo. Alguns expõem a saúde de quem ataca as autoridades. Muitas são inscrições de punks e anarquistas. Outras são assinadas por uma federação anarquista muito expressiva composta por parte do movimento estudantil. No entanto, mesmo entre certos estudantes, ainda há a reivindicação para organizar o movimento. O clamor por organização pode matar um instinto de ódio à autoridade estampado nas paredes.teatrinho Durante as encenações diplomáticas do encontro anual da ONU, um novo (velho) arranjo se articulou: o presidente dos Estados Unidos acenou favoravelmente ao novo presidente do Irã, procurando aproximação. Os EUA querem impedir o Irã de produzir bombas atômicas. O Irã quer continuar a participar do mercado internacional sem as sanções econômicas impostas pelos EUA. Os EUA querem pacificar o Oriente Médio impedindo uma presença ainda maior da Rússia e da China garantindo negócios e posições estratégicas, bem como protegendo seus aliados árabes e israelenses. O Irã quer manter o regime islâmico e sua influência sobre os xiitas da região. Na retórica puritana e democrática dos EUA, o Irã é uma tirania. Na retórica islâmica radical do Irã, os EUA são o “grande satã”. Nos interesses estratégicos e capitalistas, ambos são Estados buscando interesses correlatos.
entre turbantes e gravatas
EUA e Irã visam novas formas de equilíbrio que redimensionem negócios e interesses. Sem apocalipses. Sem guerras santas. Entre Estados, o jogo é o da circunstancial alternância entre guerras em nome da diplomacia, em nome da paz. No fim das contas, em persa ou inglês, é a grana e a preservação do poder político o idioma comum do papo cabeça entre enturbantados e engravatados. 
concessão da internet
Nesse final de semana, foram autorizadas as primeiras conexões de usuários da Internet às redes sociais Facebook e Twitter pela República Popular da China. O país com maior número de conectados no planeta (591 milhões) não teve o acesso em todo seu espaço territorial. A concessão da internet, emitiu licenças para companhias estrangeiras a fim de fornecer o acesso apenas em Xangai, zona de comércio por onde circulam empresários de todos os cantos que precisam estar conectados e cuidar de seus empreendimentos. Quando o país inteiro terá acesso? Questão de tempo. A China e suas empresas ZTE Corp, Huawei Technologies e a Vixtel Technologies vendem monitoramentos de internet para os mais variados países, inclusive para o Brasil. A ditadura chinesa já realizou seus testes pelo ocidente, agora basta ir testando e melhorando o monitoramento. Pequim e o resto do país aguardam ansiosamente a concessão da internet. Enquanto isso, a China continua a vender sua tecnologia, sustentando sua velha ditadura.
asfixia
Um novo sistema de mapeamento digital está sendo aplicado em São Paulo. A nova tecnologia consiste em unir as informações de imagens aéreas, guiadas por GPS, com dados mais específicos, como altura, largura e textura da topografia, possibilitados pelo uso de laser. A justificativa para implementação da nova tecnologia é a regularização do valor dos IPTUs, em função de construções irregulares na cidade. Dessa maneira, em 3 anos, o mapeamento de São Paulo em 3D estará finalizado com atualizações cada vez mais velozes. É uma questão de (pouco) tempo até que os chamados benefícios frente à segurança, com o controle minucioso de cada espaço na cidade, sejam elencados. Já não há espaços de livre circulação. Estar “ao ar livre” é uma expressão que ficou no passado. Estamos todos asfixiados a céu aberto.