Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 171, outubro de 2014.
o perigo dos restos
Os restos da convivência nas cidades, os refugos, aquilo que é varrido para debaixo do tapete, o que não é capitalizável para a memória da vida individual e coletiva tende a ser abjurado na história.
O que expõe a putrescência do progresso evidencia os ruídos do desmoronamento do reformismo moderno. Mas, diante do apocalíptico, este se reergue ao incluir o antigo degenerado como o degradado a ser emancipado.
Leis, convenções sociais e práticas socioambientais se esforçam para reduzir, reutilizar e reciclar os restos das experiências do que é vivo. E isso vai da merda ao lumpen.
Constrói-se sobre o discurso de fim do mundo práticas que objetivam afastar a escatologia, seja como os dejetos do corpo, seja como a imagem dos últimos dias ou mesmo a caminhada lenta, desorientada e famélica dos miseráveis pelas ruas das pequenas e grandes cidades.
A gestão do lixo explicita a tentativa de pulverizar e repaginar o resto e o refugo em algo bom, capitalizável, rentável e positivo politicamente. Esta é a condição ecológica e social, porém, antes de tudo, é a empresarial e governamental com inclusão e capitalização simultâneas.
As novas legislações, efeitos de uma agenda global ambiental, esmeram-se em reconfigurar, por meio de seus procedimentos de gestão dos riscos, tudo aquilo que lhes escape, inclusive a palavra “lixo”.
No Brasil, esse termo tornou-se obsoleto desde a promulgação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10), primeiro instrumento jurídico-político de abrangência nacional a instituir procedimentos de gestão dos restos.
O lixo agora é fragmentado em resíduos, rejeitos, restos orgânicos e inorgânicos e outros termos técnicos que transfiguram as putrescências e imundícies de outrora em empreendimentos salutares nos dias atuais.
O lixo vira luxo e ouro nas mãos neoliberais, absorvendo o retorno do podre à forma de riquezas naturais, por meio da alquimia (tecno)lógica de mercado.
Até o ínfimo ato de jogar o lixo não mais na lixeira é modificado para expressar cuidados ecológicos, de modo que o indivíduo fique circunscrito às formas de conduta que passam por discursos higienistas, assistencialistas e ambientalistas.
Inscreve-se, assim, em cada cidadão o aspecto policialesco da vigilância dos atos e dos hábitos, moldando-o como ambientalmente responsável destinado a monitorar as práticas que impeçam a otimização e capitalização de tudo e todos. Na era da assepsia importa produzir o limpo com lucratividade e inclusão.
Entretanto, a recondução das condutas não diz respeito apenas aos restos materiais.
O frisson do ótimo funcionamento das cidades e metrópoles, ao não deixar espaço para a acumulação daquilo que não serve aos fluxos empresariais e de governos, requer gestão dos restos materiais, como também dos resíduos imateriais.
Assim, funciona também para o uso da memória da existência nas cidades.
Nos centros das cidades, grandes e pequenas, aquilo que está abandonado deve ser revitalizado, ressignificado, repaginado.
Ressignificar acontecimentos através de uma mudança de visão de mundo é repaginar lembranças dispersas na história em categorizações como, por exemplo, memórias tristes ou alegres.
Destas memórias àquelas sem atribuição de valorações, resta-lhes a lixeira – física, subjetiva, cibernética...
Aquilo que não é localizado na marcação do verdadeiro-falso, do bom-mau ou de bem-mal, também não ficará em um sedutor não lugar para alimentar discussões acadêmicas e suas frágeis hipóteses sobre a pós-modernidade.
O rejeito terá também seu destino ambientalmente correto, seja nos lixões, nos projetos de contenção das moléstias sociais, ou no “esquecimento” confortável do conceito de inconsciente.
Os procedimentos de gestão de riscos propulsionam as memórias capitalizáveis e os hábitos governáveis e, não obstante, ainda oferecem lugar aos restos, desde que não insistam em sua posição de estorvo e externalidades.
Espaços abandonados, como um hospital desativado há 20 anos na região mais valorizada da maior cidade do Brasil, torna-se espaço de intervenção artística como estratégia de marketing para a inauguração de um futuro shopping e hotel de luxo.
Catadores de papelão que perambulam pelas cidades, aos poucos se metamorfoseiam em agentes ambientais e vêm nesta posição a ascensão de um reconhecimento social e de mercado.
A estratégia para aglutinar as diferentes expressões daqueles que vivem dos refugos urbanos é a criação de um mito de origem (Zumbi dos Palmares, Expertina Martins, Sepé Taraju, Carlos Mariguella...) e, por conseguinte, de uma identidade de “exclusão e opressão” que ascende à de inclusão e participação.
Com efeito, tem-se a fundação de um movimento social nacional que brada pelos direitos dos catadores, forja uma história de exploração, vitimização e resiliência que atende aos requisitos para a ascensão ao status de minoria.
Enquanto isso, os antepassados infames (trapeiros, garrafeiros, carroceiros e catadores de rua), estes inglórios personagens, são travestidos em “heróis de resistência”: os degenerados de outrora passaram a ser segmentados agentes do combate à degradação do planeta.
Lideranças nacionais dos catadores são lançadas e um projeto de poder começa a se configurar.
Eles frequentam as reuniões ministeriais, agitam articulações governamentais, participam de agendas internacionais.
Os catadores de materiais recicláveis no Brasil, enfim, exportam suas tecnologias sociais da miséria para países do eixo “sul-sul” amparados por associações de indústrias multinacionais “sem fins lucrativos”.
Alguns poucos catadores “esclarecidos”, em parceria com multinacionais e ONGs transnacionais, iniciam a expedição para divulgar uma tecnologia que transforma projetos sociais em saídas socialmente justas, economicamente viáveis e ambientalmente sustentáveis (leia-se: soluções de baixo custo e ótimos resultados para a produção e o capital).
Enquanto isso, aqueles que não se deixam levar pelos protecionismos ancorados nas práticas de inclusão social tornam-se o resto destes trabalhadores do lixo.
A nova identidade do profissional, “catador de materiais recicláveis”, não aceita o bêbado, o craqueiro, o morador de rua, o desagregador, aquele não passível de ser agrupado ao trabalho e discurso da economia coletiva, solidária e cooperativa.
Mas não deixa de comprar-lhes materiais coletados capitalizáveis. Produz-se uma nova estratificação entre miseráveis: os que passam a ser organizados e incluídos e o resto que, a seu modo, “cata lixo” para seus superiores. Também um segmento do lumpen ascende ao status de classe média!
Tudo aquilo não passível de valorização ou valoração, o resto, deve ser ajustado para um lugar.
O resto grita a frenética necessidade de utilidade das coisas para comer, beber, dormir, perambular, consumir drogas podres na cidade, e desvela sua suposta fragilidade que, por n razões, os dispõe ao discurso sociológico como ainda não incluídos, apesar de imprescindíveis ao novo ramo da economia e aos seus superiores miseráveis já organizados como empreendedores.
O infame é tido como o frágil, o vulnerável, o resto, o perigo, o que deve deixar de existir ou ser governado pelo assistencialismo e os negócios sociais. Para isso, novas e velhas tecnologias de governo competem e atuam para produzir não só lixeiras, bolsões, ressignificações e repaginações pacificadas para o segmento resto alçado à visibilidade social, mas também para o resto do resto.
E assim o segmento lumpen, mais ou menos absorvido e oscilante na capitalização, ficará cada vez mais exposto aos programas de saúde e higiene das cidades, como bem desejam Estado, governos, empresários e organizações de catadores de lixo.
Na aplicação e combinação de teorias e tecnologias, visa-se tornar sustentável o insuportável e produzir doces, sutis e sofisticadas pacificações. Uma outra forma darepaginada política do extermínio se consagra!
A vida vaza, se estende, produz excessos. Não há como pacificar a existência. E o que se busca ignorar, controlar, capturar, pode, num revés, saltar para fora e surpreender os que se arvoraram a governar inclusive o que restar do resto.
Não existe vida pura!
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