bella, ciao!
Diante do fim de uma existência intensa, fulgurante, cabe não o luto, mas sim uma
saudação à vida. Diante da existência da vida como obra de arte da anarquista Judith
Malina, cabe-nos retomar seus percursos ético-estéticos e seguir com ela. Judith nasceu em
1926, em Kiel, Alemanha. Nos anos 1930, ao fugir com os pais do governo nacionalsocialista,
desembarcou em solo estadunidense. Ainda muito jovem, enquanto seu pai,
Max Malina, trabalhou para libertar homens, mulheres e crianças encarcerados em campos
de concentração, circulou com a mãe, Rosa, pelas ruas de New York, lendo poesias que
expunham as violências orquestradas pelos nazistas. No mesmo ano em que a II Guerra
Mundial se encerrou, com menos de vinte anos, matriculou-se na escola de Erwin Piscator,
diretor de teatro que também havia se refugiado nos Estados Unidos. No interior da
escola, além do teatro descobriu outra paixão e amor com Julian Beck. Afetada por este
encontro, pelas leituras do anarquismo de Paul Goodman, no final da década de 1940,
inventou com Beck o the living theatre, teatro vivo inaugurado no início dos anos 1950, na
própria casa em que dividiam na West End Avenue. Entre o ocaso da II Guerra e a eclosão
do conflito no Vietnã, Malina e Beck afirmaram a anarquia articulada com a perspectiva
do que chamaram de uma revolução não violenta, montando textos e organizando
protestos nas ruas como as “Greves Gerais pela Paz”. Tal posicionamento levou os dois às
primeiras prisões, no fim da década de 1950 e início dos anos 1960. Em 1963, depois de
uma apresentação de “the brig”, texto de Keneth Brown sobre as violências no interior de
uma prisão da marinha estadunidense, Beck e Malina foram sequestrados pelo Estado sob
a justificativa de não pagamento de aluguel e dos impostos de renda. Malina, durante o
julgamento, além de dispensar advogados e ler seus poemas, berrou “inocentes” a cada
vez que o promotor responsável pela acusação utilizou a palavra “culpados”. Ao ser
repreendida pelo juiz, declarou: “você pode até cortar a minha língua fora, mas não pode
me impedir de dizer que sou inocente. Eu não lhe concedo este privilégio”.
Impossibilitada de trabalhar, no final dos anos 1960, Malina viajou com o the living theatre
para a Europa. Depois de participar dos acontecimentos de maio de 1968, em Paris, mais
precisamente da ocupação do Teatro Odeon, apresentou “paradise now”, uma das
montagens mais radicais da segunda metade do século XX. Em seguida, foi expulsa de
Avignon e Roma e retornou brevemente aos Estados Unidos. No início dos anos 1970,
chegou ao Brasil, em plena ditadura civil-militar, a convite de artistas que solicitaram o
apoio do the living theatre na “luta pela liberdade num país cuja situação eles descreviam
como sendo desesperadora”. Junto com o bando, Malina decidiu que a melhor maneira de
apoiar os artistas era precisamente inventar pelas ruas, em espaços considerados “nãoteatrais”,
um novo modo de fazer teatro. Depois das proposições contidas em “o legado de
Caim”, realizado em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o coletivo foi impedido
novamente de trabalhar, desta vez pelo DOPS do estado de Minas Gerais, que
interrompeu o processo de “sonhos de mamãe”, montagem realizada em parceria com
filhos de operários e mineradores da região. Acusados de “subversão” e “tráfico de
drogas”, os integrantes do the living theatre foram presos, julgados e expulsos do país. Em
seus diários da prisão no Brasil, Malina relata a descoberta das bachianas de Villa-Lobos,
as canções de amor como as de Roberto Carlos que ouviu no rádio no interior da cela, o
prazer em tomar um suco de frutas “superbom”, o amor entre dois resistentes à ditadura
civil-militar separado pelas paredes das celas, a morte do amigo Jim Morrison, o embate
com os oficiais quando questionada sobre o que pensava da polícia e respondeu: “como
pacifista, não posso concordar com nenhuma violência”. Presa no DOPS, também recebeu
com imensa alegria a notícia vinda do norte da América de que acabara de se tornar avó.
A expulsão pela ditadura civil-militar brasileira propiciou a retomada de “o legado de
Caim”, ao longo de toda a década de 1970, com experiências realizadas em lugares
distintos, desde minas de minérios de ferro em Pittsburgh até a exposição pelas ruas de
New York de “Seven meditations on political sado-masochism”, encenação das torturas e
violências observadas nas prisões brasileiras. Entre 1980 e 1990, após a morte de Julian
Beck, Malina seguiu adiante, dirigindo inúmeras peças na sede que o the living theatre
inventou na Third Street. Depois das montagens de “anarchia” (1995) e “utopia” (1996),
viajou à Itália para apresentar performances contra a pena de morte instituída pelo
governo do país, tema retomado com força no final da década com “em meu nome não”,
na Times Square, em New York, cada vez que algum condenado a morte era executado
pelo governo dos Estados Unidos. Por fim, nos últimos anos de vida, Malina continuou a
trabalhar sem cessar. Para além de montar “no place to hide” (2013), texto em que expôs a
violência da especulação imobiliária a partir do fechamento de mais uma sede do the living
theatre, durante as comemorações de seus 88 anos afirmou: “eu gostaria de livrar o planeta
da pobreza, do dinheiro, das fronteiras, das prisões, dos policiais e da violência”. Quando
questionada se pretendia parar de trabalhar devido aos problemas relacionados à saúde,
comentou: “eu gostaria de me apresentar mais umas 600 vezes”. Diante de uma existência
como esta, tecida em matéria fina, cabe não o luto, mas o movimento que é próprio da
luta, da vida, este teatro vivo, aqui-e-agora. No teatro, ou em qualquer instante, se resiste.
Cada um se transforma e se constrói como obra de arte. A existência de Malina pode ser
vista na internet, lida em livros e teses, ouvida nos mais diferentes espaços, mas não só
deve ser admirada por anarquistas, mas por qualquer humano que desista da servidão
voluntária. Ela tinha o estilo da contundência legada por Henry David Thoreau com a
desobediência civil, a da existência como guerra permanente proudhoniana, a rebeldia
bakunista diante de qualquer autoridade, somadas aos cuidados com educação que
apreendeu na coexistência com Paul Goodman. Como a anarquista Emma Goldman
tornou-se a mulher mais perigosa da América. Morreu aos 88 anos, deixando em pé dois
infinitos potenciais na lembrança da data triste, apesar da inevitabilidade da morte. Uma
morte que reitera a continuação da vida libertária. Diante de uma existência fulgurante,
viva, um viva! viva Judith Malina!
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