sexta-feira, 17 de outubro de 2014

hypomnemata 170

Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no170, setembro de 2014.

anarquistas não votam...

Os anarquistas não são refratários à democracia e a tomam, desde Proudhon, como regime da série liberdade.
Se houver um regime político, que seja o democrático. Somente porque em seu interior se podem potencializar os espaços, as experimentações de liberdade e a possibilidade imediata de rompimentos com hierarquias, centralidades, propriedade e Estado. Mas sem esquecer que a democracia reforça o governo de todos por cada um, enquanto a anarquia instaura o governo de cada um por cada um.
A recusa ao pleito e à participação em eleições não é um a priori moral ou um princípio derivado de suposta identidade.
Um de seus começos está na reflexão de Proudhon sobre o seu exercício como o deputado mais votado da história da França.
Em seu mandato, “trabalhou como um louco” em favor da justiça social, e mesmo assim nunca se viu tão distante das questões que atingiam diretamente os que o haviam aclamado como representante político.
No Brasil, após o saque ao Moinho Santista, em 11 de julho de 1917, os trabalhadores sugeriram ao jornalista e militante libertário Edgard Leuenroth, preso sob a acusação de ser o “mentor intelectual do saque”, que lançasse sua candidatura a deputado.
Segundo as leis vigentes, a candidatura facilitaria sua libertação.
Porém, Leuenroth recusou-se e lançou um libelo expondo sua decisão, intitulado “por que os anarquistas não aceitam a ação político-eleitoral”, publicado no jornal O Combate, em fevereiro de 1918 (e republicado em verve n. 2/2002 http://www.nu-sol.org/verve/pdf/verve2.pdf).
Neste texto, discorre sobre a inutilidade da ação político-eleitoral e seu caráter contraproducente em face às lutas que haviam se desenrolado com a grande greve de 1917.
Lembra sua atitude anarquista, evocando a coerência em sua recusa, mas indica também a formação das “capelinhas políticas” que toda ação eleitoral engendra, reforçando entre os trabalhadores a “mentalidade messiânica imperante”.
Conclui sublinhando que o parlamento é um “ambiente politicamente burguês e dominado pelos interesses capitalistas”, corrompendo mesmo quem, por ventura, nele adentra munido de boas intenções; é, portanto, um lugar “incompetente para decidir sobre quaisquer assuntos da vida social” e impotente para fazer valer o que nele se decida.
Por fim, e não menos importante, afirma que a ação parlamentar freia as possibilidades de ação direta — que não se confunde com cogestão e gestão compartilhada —, a única via pela qual, historicamente, conquistou-se um tanto mais de liberdade de ação, mesmo dentro do capitalismo, como a jornada de oito horas, arrancada na marra dos que se locupletavam com a exploração do trabalho alheio, roubando não apenas os frutos de seus esforços, mas também suas horas de vida livre.
            Os libertários se recusam a participar nas eleições e as combatem por meio de uma decisão refletida, baseada na experiência e de forma ativa em favor das lutas pela liberdade que não se fazem com mediações, negociações e representações.

quase um século depois
            O pleito majoritário de 2014, no Brasil, realizou-se pouco mais de um ano após as manifestações de rua que tomaram quase todas as capitais do país.
As jornadas de junho de 2103 foram evocadas, por vezes de maneira um tanto envergonhada, como elemento diferencial dessa edição da chamada “festa da democracia”, e apareceram ora como ponto de referência, ora como ponto de contraste.
            A corriqueira variedade de produtos destinada aos cidadãos-consumidores, em exposição nas eleições, assemelha-se à enfileirada disparidade presente em prateleiras de supermercados ou em lojas de carros. São produtos com plataformas semelhantes e funções análogas: atraem por meio de adereços insignificantes e pleiteiam um estatuto de diferença.
            As candidaturas pretendiam mostrar suas capacidades de “representar” a difusa insatisfação exposta nas ruas em junho de 2013, intitulando-se capazes de prover uma “nova política”, com “mais mudança” ou como “mudança de verdade”, segundo a ocasião.
            Entretanto, temperada de forma insossa com palhaços, velhinhos simpáticos e minorias raivosas (ávidas pelo estatuto jurídico de maioria reconhecida), acabou com uns e outros de mãos dadas ou abraçados com uma vassoura no rastapé da festa democrática, na qual prevaleceu a defesa da segurança.
            Não há verdades ocultas a serem reveladas: as mídias divulgaram amplamente os financiamentos comuns de aguerridos adversários, e todos, na corrida eleitoral, abriram cadernetas de dívidas com banqueiros, latifundiários, empresários de segurança privada, seguradoras, empreiteiros e usineiros.
            Os resultados, entregues em tempo recorde pelo questionável voto eletrônico (maior orgulho internacional do sistema eleitoral brasileiro), expuseram desilusões, corações traídos e partidos.
O festival de pastores, delegados, policiais, jogadores de futebol, celebridades (seja lá o que essa palavra designe), encerrou-se com a choradeira de minorias postulantes à condição majoritária, que cada vez mais se arvoram em depositários da reserva moral do país, seja pela esquerda messiânica made in brazil, seja pela direita pentecostal desavergonhadamente fascista.
            Há de se destacar no “processo” o upgrade do sistema eletrônico, acrescido de identificação biométrica, testado nas menores, mais pobres ou exemplares cidades da federação para sondagens de marketing.
Todas as incongruências e dificuldades acabaram tratadas como costumeiras “dificuldades normais de adaptação”.
O eleitor, obrigado por lei a fazer o papel de cidadão-consciente, consumidor, protagonista ou simplesmente otário, teve que “brigar” com a máquina para provar que suas digitais eramdele mesmo, chegando, em alguns casos, a ser impedido de exercer o seu obrigatório dever de cidadão. Mesmo com tamanha parafernália para garantir a lisura do processo de votação, ainda registra-se uma série de ocorrências nas quais eleitores descobrem que alguém já votou em seu nome.
Até os vivos que não puderam ou se recusaram a comparecer às urnas tiveram, ou terão, que confessar e provar sua falta, na forma de justificativa ou por meio de processo de regularização formal mediante pagamento de taxa.
A obrigatoriedade do voto segue intocada, mesmo com pontuais contestações orientadas por argumentos diversos, à forma pela qual o Estado encaminha ao confessionário político cada um de seus cidadãos.
            Mesmo em um regime democrático, a obrigatoriedade do voto atesta a prisão territorial a que é submetido cada um de seus detentos-cidadãos, com direito a controle biométrico, controle de circulação, controle empregatício, lei seca e o que mais aprouver ao detentor.
Quem não vota não tira passaporte, não abre conta em banco, não faz concurso público nem para professor. A obrigatoriedade do voto faz parte da prisão de todos no território nacional.
William Godwin já afirmava no século XVIII que a “coerção não é um argumento, ela inclui a confissão tácita da imbecilidade”.
E no carcomido itinerário da confissão, da política, da justiça e do direito universal, que jamais se aparta do duplo direito-dever, a obrigatoriedade trafega de punição em punição; de perdão em perdão.
É preciso, mais uma vez, não esquecer que a um perdão presente sempre resta uma dívida futura.
Eis aqui mais uma face do direito na lógica política do endividamento infinito que, também, compõe a covarde cultura do castigo.
            Outro “dado do processo” veio da imprecisão das sondagens opinativas, até mesmo a de boca de urna, que sacramentava o “sucesso” dos que pleitearam a reeleição, usando a propriedade dos estamentos burocráticos e conseguindo fazer valer seu domínio para não “largar o osso” das suas fontes aparelhadas e dos modos de embolsar.
            Na corrida ao posto de mandatário maior da nação, repetiu-se a encenação, já envelhecida dos modernosos, progressistas e ativistas das redes sociais.
De início, surpreendidos por uma candidatura imprevista em ascensão meteórica, despertou-se a fúria da “companheirada”, majoritariamente entregue ao ativismo digital, que se lançou ao serviço de “desconstrução” de adversária surpresa.
Alçada ao posto de inimiga apocalíptica e com os devidos ajustes na maior máquina partidária do país, pretendeu-se deslocar a disputa conhecida para a devida “polarização”, como desejam os politólogos brasileiros made in usa.
O resultado saiu pela culatra!
            Como ocorreu na Espanha, após os “indignados”, e na Grécia, após as revoltas de rua de dezembro de 2008, nada na corrida eleitoral refletiu a insatisfação das ruas.
E veio a segunda surpresa, com a migração de votos da inimiga apocalíptica para o candidato formal de oposição.
Não houve, enfim, desconexão ou crise da representação, como querem os liberais ou marxistas recém convertidos à nova política, simplesmente porque são campos de lutas distintos.
            Repete-se o circo, o teatro profissional ou amador que, com seus protagonistas e antagonistas, renova a cada pleito a propriedade da máquina do Estado nas mãos dos mesmos donos, gerenciado por novos e velhos encarniçados burocratas, serviçais provenientes das classes trabalhadoras ou das classes médias intelectualizadas e progressistas, que habilmente sabem deixar intocadas e entocadas questões realmente pertinentes à vida e à liberdade de cada um.
            Não cabe aos representantes ou aos seus serviçais burocratas — apresentando-se com figurinos conservadores, progressistas, de esquerdas ou de direitas —, a transformação da vida.
A decisão de não mais servir é uma atitude que diz respeito a cada um.
Isso não cabe nas urnas, sejam de papelão, lona ou eletrônicas.

além e aquém da direita e da esquerda
            Em sua enciclopédia anarquista, Sébastien Faure definiu o anarquista como aquele que luta contra a autoridade que pretende dirigir a vida, seja ela qual for ou em qualquer forma que ela se apresente.
            Os libertários não cabem nos bancos de dados políticos que buscam separar, dividir e hierarquizar as diversas identidades e sujeitos projetados e representados nas disputas político-eleitorais. São incomuns.
            Anarquistas não são esquerda, direita ou centro no Estado; não são progressistas, conservadores ou reacionários; os anarquistas dispensam palavras de ordem. São raros.
Estão aquém e além da direita e da esquerda.
Anarquistas são libertários!
            Por que os anarquistas não votam?
            Suas lutas buscam a invenção de outros espaços, experimentações de liberdade e produção de uma vida inclassificável.
            Libertários são antipolíticos, prezam a ação direta e atiçam transformações pela revolta.

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