esta é uma carta feita das intencionalidades dos afetos... uma carta para compor filhos... neste tempo em que eu e minha companheira vivemos a invenção da maternagem e experienciamos as mais diversas (des)aprendizagens para aprender sempre outras coisas... neste tempo, aprendemos sempre outras coisas e outros afetos... vivemos uma das coisas mais lindas e grandiosas vendo os filhos se fazendo transversar com nossos quereres e nossos existires e, assim, compondo suas vidas... cada um compondo ao seu jeito, no seu tranco, na sua intensidade e na sua capacidade... falo de filhos, porque já não temos somente filhas... eram três meninas -uma mais intensa do que a outra-... agora mais uma menina e um menino nos aquecem as entranhas afetivas... podem nascer a qualquer momento...
Cruz
Alta, 14 de Julho de 2014
À
Morada da Poesia
Vara da
invenção e da Criação
Peço
licença, para além das liturgias, (...), para
dar a compor a poesia que nos inventa enquanto viventes:
Venho
do campo das escritas e da contação de histórias, então, para dizer da vida,
invento palavras e desenho afetos... para adentrar a (...) questão da adoção de nossos filhos, escolho dizer um pouco de mim e das vidas
que a minha vida ajuda a compor... mas, antes de escrever sobre algumas coisas
vindas do processo de adotar filhos, quero relembrar um escrito que fiz para
meu pai, logo depois de sua partida de nosso convívio... retomo esse escrito,
porque meu pai se foi num tempo em que eu, minha companheira e nossas filhas já
gestávamos a possibilidade de termos mais filhos (e irmãos)... meu pai, apesar
de ter uma formação humana e ética conservadora –moldeada ao seu tempo-, quando
soube de minha opção sexual, levou algum tempo para acolher e respeitar isso,
mas o fez com grandeza e, muito tempo depois dessa ocasião, quando conheceu as
filhas que me vieram junto com minha companheira, acolheu-as como se sempre
tivessem sido suas netas... e isso nos mostrou muito do que pensamos sobre a
adoção... adotar uma criança/adotar um filho implica em inventar espaço para o
cuidado, para o carinho, para o acolhimento, para a amorosidade, para o afeto,
para a generosidade, para a solidariedade... inventar, nesta toada, significa
criar... e só temos capacidade de inventar/de criar quando há disposição para
isso... disposição para produzir vida, vitalismos e forças... enfim, queria que
meu pai pudesse ver muito mais do que viu da boniteza de vida que me ajudou a
inventar, mas, não podendo ver, vejo eu que isso também é ele!
Taí o
escrito:
“no dia
21 de abril de 2014 meu pai (Emílio José Diello), num golpeio lento e preciso
da vida, retirou-se de si... retirou-se da vida física, mas seus versos
transversam com tantos versos nas vidas de tanta gente que nem sei contar...
muito da grandeza com que atravesso a vida de tantas gentes vem das coisas que
com ele desaprendi ao longo da vida... meu pai foi um homem que nos condenou à
nossa própria liberdade (e isso não é uma liberdade qualquer)... os referencias
com que transpassava nossos viveres emergiam de seus existires silenciosos, de
sua forma de não ser um exemplo para ninguém, de seu jeito simples e quieto de
cruzar com precisão nossos imaginários... enfim, seu feito foi a simplicidade e
seu jeito foi de não dizer por onde ou para onde deveríamos ir... cada um
entendeu isso ao seu modo... mas o que é mais importante: mostrou-nos a luta
feita de intensidade, precisão, força, perspicácia, sabedoria, calma,
paciência, leveza, grandeza e tranquilidade... mostrou-nos a luta dos que vivem
inventando a luta no correr dos seus aconteceres... nunca nos mostrou o desenho
do que seja certo ou errado, mas nos ensinou, ao seu modo, a ver as coisas como
elas são... e por aí cada um aprendeu a fazer o que quis e o que pôde com suas
experimentações... com a vida anotada na caderneta e vivida ao compasso dos
movimentos inventados e produzidos...
das
heranças que meu pai me deixou, as que mais se fazem presentes são a barriga...
o olhar transversado com o horizonte... as invencionices da conversa e da
contação de causos... a alegria... a desimpedida poesia... a cara marota de
quem inventou uma mentira bem do jeito de uma verdade... o desapego com as
coisas materiais... a solidariedade... a generosidade... a experiência de
bolicheira e moinheira*... a crença de que o fim nunca está próximo... e tantas
outras coisas!
quando
falo em experiência de bolicheira e moinheira me refiro a um modo de
subjetivação... é um jeito de viver e trabalhar que passa por muitos afetos...
afetos que meu pai tão bem nos ensinou... feito de uma ética inventada em sua
relação com a vida e com o mundo, sempre fez reverberar na vida das gentes os
tinires de suas ferramentas e, quando não as tinha, se podia inventava, mas se
não podia, reconhecia sua limitação e tocava a vida... em seus fazeres
políticos, transitava em vários campos dos existires da comunidade em que vivia
e de muitas outras comunidades... então, nessa toada de ser bolicheiro e
moinheiro, ensinou-nos a compartilhar as comidas e os saberes...
criei-me
ouvindo uma expressão que diz que todo moinheiro seja ladrão e aí olho para a
composição financeira e material feita por meu pai e por minha mãe, e vejo que
os bens materiais que hoje fazem parte de seus viveres, são praticamente os
mesmos de quando começaram a compor juntos suas vidas... e isso não é uma coisa
qualquer... o bolicheiro vendia comida, aviação, perfumaria, coisas para a lida
no campo, a querosene, a graxa de gado, a banha de porco, a corda, o fumo em
corda (e depois veio também o fumo já picado), o chumbo, o chapéu, a pedra
canforada, a noz moscada, o lacto purga, o melhoral e o fontol infantil, a
terramicina, o bálsamo alemão, o fermento, a cachaça (em trago e em garrafa)...
eu ainda seria capaz de reproduzir com precisão o bolicho em que vivi a minha
infância... o setor dos chapéus, a farmácia (humana e veterinária), o setor dos
alimentos secos, a grande geladeira comercial, as tulhas, o depósito, o balcão
por trás do qual ficávamos para atender, a balança, o baleiro... e tantas
outras coisas... ah! e os papeis de embrulho (nos quais fiz meus primeiros
rabiscos e em que aprendi a calcular)... esses poéticos papeis em que aprendi a
fazer anotações para usar depois e que dão o nome a este blog... enfim, o
bolicheiro tinha que ter muito tino para prescrever o medicamento correto, para
dar uma orientação bem cabida àqueles que lhe consultavam no balcão ou que lhe
pediam uma palavrinha em separado, para expressar uma posição ética e política
precisa sobre as coisas da vida, da comunidade e do mundo... e, além de tudo,
era feito de uma generosidade e de uma solidariedade desenhada pelo desapego,
garantindo a comida na casa das gentes, mesmo quando não havia dinheiro em seus
bolsos... lembro de meu pai se desdobrando em mil, na negociação dos prazos de
pagamento com os distribuidores, para garantir o fornecimento dos suprimentos
no bolicho... isso era preciso, pois a caderneta era bastante imprecisa... nem
sempre as pessoas tinham o dinheiro na data aprazada e mesmo assim, sempre se
dava um jeito para garantir-lhes a boia em casa...
o
bolicho já faz tempo que foi desativado, mas o moinho ainda está ativo...
moinho de pedra, feito para moer e partilhar o grão, era como que um cerne da
existência de meu pai... em seus últimos dias de vida, hospitalizado, em alguns
momentos em que esteve "variando" (delirando) em função do
agravamento de seu estado de adoecimento físico, fazia comentários e
recomendações a quem estava lhe cuidando, com relação às moagens, à farinha, ao
moinho, dizendo que não era para deixar faltar farinha para ninguém.
meu
pai, em seus pensares e em seus fazeres, era a mais genuína expressão do que
seja um político... atuante, vindo do tempo em que oficialmente só havia a
arena e o mdb, foi um militante contumaz do mdb e depois do pmdb... no mais,
era essencialmente um político... provocador de pensares e de fazeres na
comunidade, era um protagonista estimulador de protagonismos... trasversava os
seus movimentos com os movimentos de outras gentes... era de fazer acontecer e
também era de acontecer... quando necessário, fazia desacontecer ou
desacontecia... foi pela mão dele que participei dos primeiros movimentos pela
emancipação de bom progresso e de tantos outros movimentos políticos... foi na
conversa com ele que desenhei grande parte de meus pensares éticos e políticos
(inclusive minha toada anárquica)...
assimassim,
meu pai foi um homem que também cometeu erros e que tinha defeitos, mas em sua
essência era um homem da vida, feito gente que inventa a vida todo dia... era
um conversador... era e é um grande homem cujos afetos atravessam muitos
existires e reverberam em muitos viveres... e é desse cerne que é feita a minha
vida... uma vida que também atravessa e transversa com muitas outras vidas...
taí a grandeza e a grandiosidade da vida das gentes... tá nessa coisa de que
nossos sentires, nossos pensares, nossos fazeres podem reverberar na vida de
tantas outras gentes que às vezes nem nos conhecem... nessa toada, ainda quero
dizer que meu pai era e é um lindo!
* como
em tantas outras palavras desajeitadas pelo popular trato da língua portuguesa,
utilizo a literária e poética expressão "moinheiro" (às vezes,
munheiro), em vez de moeiro”.
Minha formação principal consiste em
ser pescadora, bolicheira, conversadeira, inventadeira, poeteira, escrevinhadeira
e curiosa (o que provoca pesquisamentos por causa do pouco conhecimento), e
minha formação complementar, em ser psicóloga, especialista em ciência política,
mestre em filosofia, trabalhadora pública na prefeitura municipal de cruz alta/rs
e, também, arredo o banco pra trabalhar num canto não tão público ou em
qualquer lugar para onde for chamada às conversas... dito isso, tenho que dizer
ainda que o que me interessa mesmo é ser gente... gente feita de desassossegos
e de alegrias, de coragens e de poesia, de desproposituras, de desacordos com o
dado do mundo... gente feita de um inventamento que contagia outras gentes...
gente feita para inventar capacidades... e é nessa toada que (des)invento e
invento minha vida e, junto com minha companheira Valéria da Silva Zorzi,
também a vejo a (des)inventar e inventar a sua vida, compondo assim o que seja
a nossa vida... e isso tudo faz rizoma na vida de nossas filhas (que foram se
tornando NOSSAS na medida em que a poesia faz ritornelo na existência de cada
uma), e seus existires nunca mais serão os mesmos, pois é o movimento que lhes
faz andar... é a beleza do movimento –cada uma ao seu tempo- que as faz
inventar a lindeza de suas andanças... andanças que ora compõem passos com as
nossas, ora são pura autonomia... e assim, escolhemos ter mais filhos...
Queríamos um bebê, porque
gostaríamos de compor com ele o tramado da maior parte possível dos passos de
sua existência, mas entendemos que podemos fazer isso em qualquer tempo, então
fomos conhecendo aos poucos (...) aqueles que viriam a se compor em nossos filhos... e eles também forma conhecendo à
nós... os afetos já nos juntam e nos encontram... já se fazem nossos filhos
acolhidos em nossos quereres, em nossos pensares, em nossos fazeres, em nossos
afetos, em nossas vidas... já se fazem irmãos de nossas filhas, principalmente
porque foram elas que os escolheram por irmãos, antes de qualquer conversa... e
assim, já compomos uma mesma poesia, porque nossos versos já se transversam e
nossas vidas já se juntaram!
(...)
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