por Rafael Trindade
“O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” – Foucault, Vigiar e Punir
O poder funciona de maneira simples, não é algo majestoso, concentrado, impenetrável. Certamente é intrincado, mas ao menos é aberto, franco, talvez até modesto. Aqui se quebra o paradigma de poder que emana de uma torre central ou do salão real. O poder passa, ele flui, não é um ponto, são linhas. Por isso podemos dizer que não há distância entre nós e o poder, somos seu ponto de resistência e ao mesmo tempo fonte de propagação. “O poder seja convosco, ele está no meio de nós”.
Outra questão importante para devida compreensão deste texto e de Foucault de uma maneira geral é a hipótese repressiva. O poder produz muito mais do que reprime. Seria impossível uma sociedade de pura repressão, exigiria energia demais, esforço demais. O poder produz de forma lenta e contínua, num ritmo cadenciado. Ele só reprime em última hipótese, antes disso ele forma, treina, exercita, conduz. (veja mais aqui).
Foucault diz: “o sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (Foucault, Vigiar e Punir).
Olhar hierárquico: esta categoria substitui o olhar dos palácios, onde os nobres queriam se mostrar e substitui também o olhar das fortalezas, onde se via lá fora o inimigo. Toda uma arquitetura desenvolveu-se para a observação do indivíduo: janelas, espaços, distribuições, concentrações. Contrariando a forma de círculo, de onde o poder ficaria no centro, criou-se uma pirâmide, de onde cada um sabia sua posição, mas podia observar o andar de baixo, um microscópio do comportamento. Ao mesmo tempo discreto e indiscreto, esta forma de poder procura criar corpos competentes, obedientes e morais. Quanto maior o número de pessoas, quanto maior a divisão de trabalho, maior a vigilância hierárquica; quanto maior o número de alunos, maior a vigilância hierárquica (“quem quer ser o representante de sala deste semestre?”), quanto maior o número de funcionários, maior o número de cargos (e funcionários do mês). Aparentemente menos violento e corporal, mas na verdade, absolutamente físico e formalizador.
Sanção normalizadora: ao mesmo tempo em que se olha, se cria todo um mecanismo penal para os comportamentos. Uma aparelho de micropenalidades se forma em torno do indivíduo sujeito às instituições disciplinares: “castigo físico leve, privações ligeiras e pequenas humilhações morais” (Foucault, Vigiar e Punir). É preciso atenção para qualquer desvio: atraso, negligência, grosseria, desobediência, conversas paralelas, sujeira, indecência. O modelo ideal de aluno, soldado, trabalhador é estipulado, uma dívida eterna para aquele que nunca poderá enquadrar-se em um modelo ideal e inexistente. A avaliação é dos atos, mas a nota é para o indivíduo como um todo. O castigo é essencialmente corretivo, e portanto repetitivo, “castigar é exercitar” (Foucault, Vigiar e Punir). Duas são as consequências: distribuição segundo as aptidões (pontos positivos e negativos para os alunos, condecorações e medalhas para soldados), e submissão ao modelo. Os efeitos se dão por etapas: comparar os indivíduos, diferenciá-los de acordo com suas aptidões, medir e hierarquizar, coagir os que não se enquadram, traçar limites entre o aceitável e inaceitável, normal e anormal, saudável e doente.
Exame: “a superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível” (Foucault, Vigiar e Punir). Este é o ponto máximo do controle normalizante, a mistura do olhar e da sanção; é através dele que o indivíduo se torna visível e objeto indivisível (atômico) da ação do poder. Através do exame se encontra a “verdade” do indivíduo. Dele, três características emergem: 1) inverte-se a visibilidade do poder: através do exame o poder se esconde, e faz brilhar aquele sobre quem atua, através do exame o sujeito se mostra como objeto, se dá, se torna números e medidas. 2) inclui a individualidade dentro de um campo documentário: nasce o indivíduo e as ciências do homem, através do exame é possível descrever o indivíduo e compará-lo aos demais; caracteriza-se grupo, coletivos e pode-se verificar os desvios dos “desajustados” 3) cada indivíduo se torna um “caso”: honra antes dada somente aos reis e realizadores de grandes feitos, agora todo ser humano tem sua vida esmiuçada, pormenorizada, detalhada, violentada por processos de marcação, classificação e objetificação.
“O poder produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” (Foucault, Vigiar e Punir).
Todas estas tecnologias de formação do homem, ou melhor, disciplinarização, foram se desenvolvendo a partir do século XVIII, por isso hoje a vemos com mais sutilezas ainda. É aqui onde vemos até que ponto nos submetemos ao poder.
“Todas as ciências, análises ou práticas com o radical “psico”, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização” – Foucault, Vigiar e Punir
Nossos passos hoje são seguidos por câmeras, laudos, exames, identificações, documentos. Qualquer cadastro exige e-mail, endereço, RG, CPF. Pior, pedimos por isso, nos mostramos abertamente, fazemos check-in, colocamos nossas fotos no Instagram, escancaramos nossa vida privada em redes sociais esperando por comentários e curtidas. “Estou aqui”, parecemos dizer, “sou assim”, queremos provar. Ao mesmo tempo em que se homogeniza, se individualiza. Somos únicos, mas somos todos iguais (veja aqui). Não se trata de uma contradição, é exatamente isso: se analisa indivíduo por indivíduo para colocá-los dentro de uma linha de normalidade e semelhança. Eis o homem moderno.
Nenhum comentário:
Postar um comentário